Tuesday, July 31, 2007

“Positivismo”

Estou só.
Perdi tudo.
Restam- me:
Vagas Lembranças do Passado
A Dor do Presente
Vagas Esperanças no Futuro.

Lisboa, 02/01/97

Monday, July 30, 2007

Metamorfoses

I

Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.



Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas…



Pam-Pac!, Pam-Pac!, Pam-Pac!
Pam-Pam-Pam-Pac!
Pac-Pac-Pac-Pam!



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.



Batentes!, Batentes!
Calai todos os gritos!
Parece noite fúnebre de ritos!

Batentes!, Batentes!
Calai todos os gritos!
Parece noite…

Parai…

Há uma ânsia em mim que não me sai…
Há uma ânsia em mim…

…Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac…Tic…
…Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac …Tic…
…Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac…Tic…



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.



…Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic…



Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas,

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhh!,
Estar preso!
Ser apagado e morrer aceso,
Ser apagado e morrer aceso!…



…Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic…



Ahhhhhhhhhhhhhhhhhh!,



Pára Tempo, pára!
Deixa de bater aos meus ouvidos!
Tu alimentas essa angústia rara
De fazer de Tudo um Nunca-Sido.

Ah!, relógio que bates sem cessar!
Que Mundo te sustenta?

– «É uma lei redigida sem vagar
E a mão cruel que a movimenta.»

Que tristeza!
Desperdício de horas!
E vou pôr-me à janela para melhor ver o que está fora…



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.



Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas…



E que sou eu?
Que sinto?
Em mim o breu –
Será do absinto?

Oh!, Que sou eu?!
O que sou eu?!
Que sinto?! –

Um mal por dentro,
Um nó muito cerrado;
Um brusco movimento
Nos sentidos velados
Pela sombra que me mantém coberto.

(Em mim o breu –
Será do absinto?)

A mim não chega a claridade.
E um véu pesado causa grande aperto.
Entre o espaço e eu há uma grade.

Estou longe do que sou
Estive mais perto…



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu


Vento nas janelas.



Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas…



Não sei onde vou.
O Futuro é incerto.
E há uma estranha e irreal realidade
Que me mantém sempre desperto.

Findou o sonho vago. Nada é Uno.
A criança perdeu-se no Passado.
Tudo o que antes foi agora é fumo
Pairando no deserto.

(Em mim o breu –
Será do absinto?)

(Em mim o breu –
Será do abcesso?)

(Estou longe do que sou,
Estive mais perto…)



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.



Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas…
Pudera eu…

Estou longe do que sou
Fui luz sou breu,
Estou longe do que sou,
Mas que sou eu?

Já esqueci tudo.
Montei na vida um estrado
Onde a cada dia represento
Novo papel,
Nova fantasia.

Estou confundido. Algo está errado.
O corpo que me coube é um pouco lento;
Não há ritmo neste Rapunzel,
Não há harmonia.

(Em mim o breu –
Será do absinto?)

(Em mim o breu –
Será da agonia?)

Sabê-lo? Como se me abandonei?
Se me confundo na Obscuridade?
Passo por tudo sem Destino ou Lei,
Leio nas Estrelas a Mendicidade…[1]

Sou um vagabundo, nu, entre a geada,
Sem refúgio da Vida, sem um coito
Que me abrigue desta Noite Gelada,
Que me albergue nesta Gelada Noite …

Oh!, Existencia, Sombra Estagnada,
Que te defines pelo sofrimento!
És uma noite sempre inacabada
Que se prolonga pelos dias dentro!

Ah, pára Tempo (Vil Tirano) pára!
Porque tanto insistes em bater?
Tu alimentas esta angústia clara
De sentir que estou a acontecer…

Mas não é mais que um parecer,
Mas não é mais que um perecer:

Sentir a dor que não pára
Parar a dor é morrer!

Parar a dor que não pára
Sentir o Corpo doer…



Sim, Tempo, pára!
Sim, Corpo, pára!
Oh, sim, morrer!



Sentir é só uma dor que nunca sara.
Ser é Não-Ser.



…Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic…



O Tempo corre mas a vida é parada,
O Tempo corre mas a vida é…

(O que é a vida,
O que é?)

A vida é nada,
A vida é nada,
A vida é nada…

(Em mim o breu –
Será do absinto?)

(Em mim o breu –
Será da derrocada?)

Sim. Tombou a minha alma…

“Ed è stato come se
Questo cielo in fiamme ricadesse in me,
Come scena su un attore…”

Ed è stato come se
Vivessi nel stupore,
Come cadessero gli astri sopra un fiore,
Brucciando un fuoco in me…

(Em mim o breu –
Será do absinto?)

(Em mim o breu –
Será falta de Fé?)

Porque tombou a minha alma…

Ah, ser indistinto do pó dos meus pés!
Quero queimar! Arder!

Tem calma…

Arder! (porque me minto),
Ceder ao meu instinto
Que age e não vê…



Calma,
Calma…



Perch’ è stato come se
Vivessi nel stupore,
Come cadessero gli astri sopra un fiore,
Brucciando un fuoco in me…

Calma,
Calma…

Signore, monsieur, distinto!,
Tenha a bondande, dê fogo!
Já se perdeu o que sinto
Mesmo se isso é tão pouco…

Mas ah!, que me importa?! Talvez se cure tudo!:
Se o espírito se evade na Quarta-Feira de Cinzas,
Então que ardamos o corpo no Entrudo!
Talvez o Demo lhe dê as boas vindas!

Calma,
Calma…

Então?
Traz fósforo o senhor?
Pois que queime!
É só barro e argila… –
Se puder eu ajudo!

Calma,
Calma…

Porquê a agitação?
Fala da dor?
Ora, não teime!
Impossível senti-la!
Tenho o corpo mudo…

Calma,
Calma…

Calou-se há anos… cem? Duzentos? Mais!
Selou-se com a palavra: FIM…
Há uma ânsia em mim que não me sai…
Há uma ânsia em mim…



A decadência é total: Pareço lava.
E sinto-me ir descendo devagar
Para o fundo húmido de um poço,
Expulso do banco do balouço
Onde antes me sentava.

Porque antes eu era uma criança
Com o olhar sorvendo o Universo;
Antes tinha sonhos e Esperança…
Esperava o Bem… tive o seu inverso…

Pois não há Bem além de certos livros,
E eu estou tão cansado de leituras!
De sonhar com Brazis empedernidos
Além dos limites da Loucura!…



Não quero sonhar mais
Porque este sonho é falso.
Só as dores são reais,
O sofrimento é mais alto.



Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!
Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!
Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!

Acabou o sonho!
Acabou o sonho!
Acabou o sonho!
Acabou!

Que a ilusão se apague do que sou,
Que a ilusão se apague do que sou,
Que a ilusão se apague do que sou…

Estou longe do que sou,
Estive mais perto,
O sonho acabou
E o real é deserto;

Estou longe do que sou,
Estive mais perto,
O sonho acabou
E o real…

O real sou eu a acontecer,
É a minha sensação…

Sou eu no meu caminho a conhecer
A minha solidão.

O real sou eu,
E o resto de mim que se perdeu,
É a ilusão desfeita pelo breu,
É a ilusão…

É o resto de mim que se perdeu,
É a minha solidão…



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.



Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas…



Pam-Pac!, Pam-Pac!, Pam-Pac!
Pam-Pam-Pam-Pac!
Pac-Pac-Pac-Pam!



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.

Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas!



Batentes!, batentes!
Calai todos os gritos!
Parece noite fúnebre de ritos!

Batentes!, batentes!
Calai todos os gritos!
Parece noite…

Parai…

Há uma ânsia em mim que não me sai…
Há uma ânsia em mim…

(Em mim o breu –
Será do absinto?)

Sim.Eu sinto ainda a dor;
E o Bem não existe,
E é dos livros o amor.

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!
Não quero sonhar mais
Porque este sonho é falso.
Só as dores são reais.
E o meu desgosto é mais alto…

Miserere, Misero me…
Però brindo alla vita…

Ma la vita,
Ah, la vita cos’è?
Tutto o niente,
Forse neanche un perchè…

(O que é a vida,
O que é?)

A vida é nada,
A vida é nada,
A vida é nada…

(Em mim o breu –
Será do absinto?)

(Em mim o breu –
Será da derrocada?

Sim. Tombou a minha alma…

…Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic…



O Tempo corre mas a vida é parada,
O Tempo corre mas a vida é…

Calma,
Calma…

Acabou o sonho –
Repito.
Morreu o menino da Infância imaginada;
Violado,
Espancado,
Escorraçado.

Forçado me ponho
Neste trono maldito:
Pareço estar à vida condenado…

A vida é parada,
Tudo é pesado.



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.

Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas!


Batentes!, batentes!
Calai todos os gritos!
Parece noite fúnebre de ritos!
Parece noite fúnebre, parai!

Há uma ânsia em mim que não me sai;
Há uma ânsia em mim que pede paz;
Há uma angústia, um gemido, um ai;
Mas logo o calam pás deitando terra,
Mas logo o calam pás deitando terra,
Mas logo o calam pás…

A minha dor a mim mesmo me enterra,
O menino que eu fui mas não fui jaz
Dentro do meu peito,
Dentro do meu peito,
Vivo curvado, nunca estou direito,
Vivo curvado, nunca estou direito,
Vivo curvado…

Respirar é o meu único pecado,
Respirar é o meu único pecado,

Oh Deus que não existes,
Quando acabo?
Oh Deus que não existes,
Quando acabo?

Porquê ser triste?
Porquê ser escravo?
Oh Deus que não existes,
Porquê ser?

O real sou eu a acontecer,
O real sou eu…

O real é a dor a acontecer
E o resto de mim que se perdeu…



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.



Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas…



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu


Vento, vento, vento…



…Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic-Tac, Tic…



Assombro!… O relógio ainda bate!…

…Pac!, Pam-Pac!, Pam-Pac! Pam-Pac!…

É o pulso; é o Tempo…

Batentes!, batentes!
Calai todos os gritos!
Parece noite fúnebre de ritos!
Parece noite fúnebre de ritos!
Parai!

Oh, meu coração, és tu? És tu então?
Não!, não batas mais,
Não!, não batas mais,
Não!

Porquê persistir na Solidão?
Porquê persistir na Solidão?
Porquê persistir na Solidão?
Porquê?

Ser é Não-Ser
Por isso perece e sê.



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.

Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas…



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento, vento, vento…


Tudo é pesado.
A vida é parada.
O meu coração é um resto de nada
Que bate turbulento.



Ahhhhhhhhhhhhhhhhhh!,

Alegria!
Alegria!
Quem te ceifou?

Uma foice negra te cortou,
Uma foice negra te cortou,
Uma foice…



E a vida é parada.
Tudo é pesado:
Não ter sensação
Sentir-me domado.

Na lama da vida
Na lota do cais
Jazer sem saída
Gemer os meus ais.

No mar à deriva,
Prostrado na lama,
Cumprir a missiva
De um Domínio em chamas

Pois tudo é pesado
Parado no escuro,
Sentir-me agastado
Não ter um Futuro…

O meu sentir as coisas é desgosto puro!,
O meu sentir as coisas é desgosto puro!,
Dormi na vida, isolou-me um muro
Feito de braços de Homens rechaçados…

O meu sentir as coisas é pura agonia!,
O meu sentir as coisas é pura agonia!,
Tem o selo do Tenebror dos Dias
E o sangue de Homens esfacelados…

O meu sentir as coisas é casado com a noite!,
O meu sentir as coisas é casado com a noite!,
E levei ao respirar tamanho coice
Que me mantenho ainda atordoado…

Batentes!, Batentes!,
Calai a dor!, calai!

Porque há uma ânsia em mim que não me sai,
Há uma ânsia em mim…

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhh!,

Batentes!, Batentes!,
Sejai Clementes,
Soai o Fim,
Sejai Clementes,
Soai o Fim,
Sejai clementes…

O sonho é curto
A dor é permanente,
O sonho é curto,
A dor…



Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu
Vuuuuuuuuuuuuu



Vento nas janelas.

Pudera eu fugir por elas,
Pudera eu fugir por elas…


Infância, infância!
Surge da bruma!
Volta do torpôr!
Faz-me feliz, dá-me as horas belas,
Que nunca foram, que eu nunca senti…

Será que eu nunca aconteci?

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhh!,
Criança que eu fui, regressa a mim!

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhh!,
Criança que eu fui, regressa a mim!
Será que eu nunca aconteci?

(Virei a mim depois do Sol se pôr,
Virei a mim depois do Sol se pôr,
Virei a mim depois do Sol se pôr,
Virei a dor, virei, virei-a em mim…)

(…)

(Virei a mim depois do Sol se pôr,
E o Sol pôs-se e eu ‘inda não vim…)

(Batentes!, Batentes!,
Sejai Clementes,
Soai o Fim…)

(…)

Em vão nisto medito.
Em vão, pela criança, eu hoje grito:
(Ecoa o grito pela noite fora)…

Agora veio o Louco, veio o Louco agora,
Rir-se da minha condição,
Rir-se da minha condição,
Rir-se da minha condição,

De ser NADA
NADA
NADA,

Ah! Ah! Ah! Ah!

Sou NADA
NADA
NADA,

Ah! Ah! Ah! Ah!
Sou…

Ah! Ah! Ah! Ah!
É rir chorando, é rir!,

O Folião chegou…

No balouço também já se sentou,
No balouço também já se sentou,
No balouço montou a sua tenda,
Pôs a minha alma à venda
E a minha vida parada…

No balouço,
No balouço,
No balouço,
Onde a criança que (eu) não fui brincava…

Alegria!
Alegria!
Quem te ceifou?

Uma foice negra te cortou,
Uma foice negra te cortou,
Uma foice…

Ela veio no assombro trágico da Noite,
Ela veio no assombro trágico da Noite,
Surgiu e secou…



Ahhhhhhhhhhhhhhhhhh!,



A vida é parada,
Tudo é pesado.
Ser é Sensação,
Um nada sonhado.

Tudo é pesado
Sendo tudo nada,
Viver de enfados
D’ alma estagnada.

Ser é Sensação
Teia de cuidados,
Suja imposição
Do meu negro Fado.

Um nada sonhado
Que me vem comendo,
Irei enterrado,
Mas não vou vivendo…



Porque há uma mudança pela estrada,
Porque há uma mudança pela estrada,
Porque a Esperança pereceu esventrada,
Porque a Esperança que me vem roendo…

Recordação que dói de ser criança!,
Morre na Alvorada
Vai desvanecendo…

Não há razão para vires doendo,
Não há razão porque eu não entendo,
Eu não entendo, não, não há razão:

Parte!, vai!, meu Inuendo!

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!!

Recordação!

Pudesses tu desvanecer na dança
Da minha Solidão!

Se tu pudesses arrancar, partir!,
Num qualquer navio de podridão!…
Esquecendo-te talvez pudesse rir,
Rir-me da minha condição:

De ser NADA
NADA
NADA,

Ah! Ah! Ah! Ah!

Sou NADA
NADA
NADA,

Ah! Ah! Ah! Ah!
Sou…

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah, rir chorando, rir!,

O Folião chegou…

Trazendo a Opressão
Do Negro Fado,
Com a Morte e a Solidão
Mesmo a seu lado…

Sentou-se e reinou.

Lisboa 11/12/96 – Bruxelas, 05/07/04

II

A Morte e a Solidão,
Irmãs inseparáveis,
Levaram-me em caixão
Numa grande viagem.

Passei por caminhos
De pedra e de lama
E vi azevinhos
Lambidos por chamas.

Passei por cavernas
Morada de monstros,
Mostraram-me as pernas
E o puro desgosto;

Cruzei mil valados
E as covas mais fundas
E vi os enterrados
Saírem da tumba;

Levaram-me ao fundo
De toda a miséria
E ao seio imundo
Das coisas etéreas.

Vi o cabo do medo,
O abismo da fome
E provei o degredo
Do Anjo-Sem-Nome;

Tiraram-me os olhos,
Cortaram-me as mãos
E fizeram folhos
Do meu coração.
Queimaram-me a alma,
Cozeram-me os pés,
E o meu ser da calma
Foi p’las chaminés.

Despiram-me as roupas,
Tiraram-me a pele,
Dobraram-me os sonhos,
Bebi o seu fel,

E depois vieram
Com um fato de bobo,
Em mim o vestiram
E disseram: dança.

Desfeito, submisso,
Olhei o meu roubo,
E os meus ossos lisos
Dançaram na campa.

Lisboa, 20/01/01


III

Desconheço tudo:
Quem sou
Onde estou,
Porque me sinto tão rijo
No corpo
E nos sentidos.
Certezas? Só duas:
A Morte está perto
E a Solidão perdura.

Tenho o espírito mudo.
O sonho acabou,
O sono findou,
E na vigília permanente redijo
(Breve conforto,
Eterno castigo),
A minha confissão sofrida e crua:
O Eterno e Humano Desacerto,
O meu sublime Elogio da Loucura!


Lisboa, 03/02/01

IV

Há uma ânsia em mim que não me sai.
Há uma ânsia em mim…

Batentes!, Batentes!
Sejai clementes!

Soai o Fim,
Soai,
Soai o Fim…

Bruxelas, 05/07/04


[1] Nota do Autor: Versão alternativa: a) Leio nas Estrelas a Inutilidade; b) Leio nas Estrelas a Mediocridade.

Sunday, July 29, 2007

Horizontes

Está na Natureza do Homem ser assim:

Velho,
Triste,
Cansado,
Tolo fugindo ao Futuro,
Por não erguer o seu rosto
Para olhar adiante.…

De que te serve essa apatia constante?

A inércia é o princípio do fim.
A vida está no Levante…

Lisboa, 09/03/97

Saturday, July 28, 2007

Viagens

I

Viajamos num mundo de sonhos
Que nos assusta por vezes,
Que nos parece medonho.

Caminhamos num espaço
Descido por escadas corridas
De medo e mágoa.

Encontramos a cada passo.
O cruzamento de inúmeros rios
Que nos afogam inter calados.

Devoramos o espaço
Com um intenso desejo de poder-
Mos viver des controlados.

Calçamos as luvas dos outros
Para aquecer o frio,
Bebemos sôfregos
Garrafas e garrafas de vinho
Para não sermos sozinhos,
Para esquecermos o Passado,
E partilharmos a cama
E o sexo
Possesso
Com o vazio.

Lisboa, 20/08/97

II

O marinheiro iça a vela
Do fundo do seu mastro –
Está na hora
De descobrir Novos Mundos.

Sacudindo do ombro uma cidade adormecida,
Está de partida
Para Novas Paragens,
Distantes de um Passado moribundo.

Aqui nesta barca,
Coleccionam-se retalhos da vida,
De porto em porto,
Guardam-se fotografias de olhares profundos,
Recordados por flashes de memória.

Aqui nesta barca,
Bebemos rum para aquecer o corpo,
Contamos histórias de piratas,
E escrevemos a nossa própria História.

Lisboa, 20/08/97

Friday, July 27, 2007

Vazio

Sopro de nada,
Ser indefinido,
Chora sozinho
O teu destino
De não seres nada.

Choro de nada
De um violino,
Chora baixinho,
Voz miudinha,
Convulsionada.

De que te serve
O choro e a mágua?
Tu estás sozinho,
Ninguém te vale,
Não vale nada!

Homem sem tino,
Com sonhos de vidro,
Chora sozinho
O teu destino
De não seres nada.

De que te serve
O choro e a mágua?
Ninguém te ouve,
Ninguém te quer,
Não vales nada.

Lisboa, 18/07/97[1]

[1] Nota do Crítico: Poema pobre plagiando Camilo Pessanha: Chorai arcadas do violencelo!, etc. A vergonha inoriginal do plágio mostra bem da natureza imoral e desprovida de talento do autor destes textos. Que o editor tenha o bom senso de não publicar e consequentemente expandir este atentado ao gosto literário!

Thursday, July 26, 2007

Ama Quello che Non Ha…

I

Um poema pode apenas ser
Num pouco de papel uma palavra.
Se importa o que está escrito,
Importa mais do que isso o que tu lês;
Para lá dos olhos do leitor,
Não existe a linguagem, não existe o amor,
Não existe o poema,
Mas apenas nada…

Lisboa, 07/04/97

II

Amo,
Amo,
Amo,
Mas o que amo onde está?
Eu chamo por tudo, eu chamo,
Mas só a Ausência responde,
Só o Vazio tem um nome,
É só o Vácuo o que há…

Bruxelas, 05/07/04

III

Se, o que eu vejo, só no meu olhar consiste,
O que eu vejo (que é o que eu amo) não existe…

Bruxelas, 05/07/04

Wednesday, July 25, 2007

Na Gare A Que Chamam Fim...

I

Próxima Partida: Anunciação.
Na Gare da Vida, Via d’ Aflição.

Lausanne, 30/11/04

II

Quando acabar este Mundo
Estarei, contigo, a teu lado,
Com um bom vinho maduro
(Meu salmo de cabeceira)
E os velhos sonhos dobrados
Na algibeira.

Quando acabar esta noite,
Virá um dia mais escuro,
Sem sol que brilhe e se afoite:
Sobra a noite que resiste,
Fica o Horror, esse muro
Denso e triste.

Quando acabar esta vida,
Virá a Morte Incansável,
Com a sua mão decidida,
No seu cavalo montada,
Colher o ser Miserável
Que é nada.

Quando Eu, o triste, acabar,
Já quando não houver Mundo,
E nada tiver lugar,
Não virás tu do Vazio
Suster meu corpo desnudo,
Roxo e frio.

Quando acabar este sonho,
Já quando não houver céu,
E todo o ar fôr medonho,
Sobre um deserto de dó,
E em tudo reinar o breu,
Estarei só…

Lisboa, 02/12/96
III

Oh!, estrelas que o céu perdeu,
Eu nasci p’ra ser sozinho!
Esta teia em que definho,
Que aranha negra a teceu?

Lausanne, 29/11/04

IV

Oh estrelas que o céu perdeu,
A teia que me prendeu
É a Vida, O Grande Nó.

Que aranha negra a teceu?
Estará nela a mão de Deus
Ou a sensação com que sou?

Eu nasci p’ra ser sozinho,
P’ra me rojar no caminho
Que o Destino me forçou.[1]

Esta teia em que definho,
Das minhas ânsias, o ninho,
Desde sempre me encerrou.

Conhecer o fim do Mundo,
Indo em mim mesmo ao mais fundo,
Roendo o horror que restou,

É o meu dever imundo
De Eterno Vagabundo.
Que demónio me criou?


V

Desconheço qual o monstro,
Não reconheço o meu rosto,
Não sou ninguém ou sou outro,
Eu nem sei que aconteceu…

Lausanne, 29/11/04

IV

Foi o Tempo que passou,
Foi o Tempo que passou,
Foi o Tempo que passou,
Mas quem viveu?

Lisboa, 04/07/01

V

Não fui eu,
Não fui eu…
Algo em mim me abandonou,
– Foi a razão?
– Não. Fui eu…

Lisboa, 15/07/01

VI

Por entre o frio da estação
Onde passam os comboios
Vi um rosto familiar:

Era a minha Sensação:
Tinha lágrimas nos olhos,
E uma expressão de pesar.

– De onde te vem a tristeza?
Porque fugiste de mim? –
Perguntei-lhe estarrecido.

– Eu vivo na Incerteza,
Entre o Princípio e o Fim.
Sentir e ser sem ter sido!

Tudo na vida é tão vago!
Tal como este nevoeiro…
E ser forçada a sentir!

Pudesse só ser um prado
Desde Janeiro a Janeiro!
Pudesse nunca existir!

Lausanne, 30/11/04

VII

Ah!, comboio da vida ! O teu embarque
Deixou-me sem ter forças que o abarque,
Quebrou-me o coração que ainda se parte,
Deixou-me com a razão ‘inda a pensar que…

Lausanne, 30/11/04

VIII

Pudesses não arrancar!,
Pudesses ficar na gare,
Nunca ligar o motor!

Mas já se ouve um apito,
Ao fundo da linha um grito…
E vais a todo o vapor…

Lausanne, 30/11/04

[1] Nota do Autor: Versão Alternativa: Que a minha angústia moldou.

Tuesday, July 24, 2007

Poema Apócrifo de Marcel Duchamp

L.H.O.O.Q.
Elle Ache Ô Ô Qu
Elle a chaux au cu
Elle a chaux, oh Q!
Elle est jeune,
Elle est jaune,
Elle est June,
Qui est tu?
Je suis O et mon Histoire
Est sans beauté ni espoir,
Je crains la vie, le mirroir,
Et je suis faite pour voir
Le déboche, l'orgie, l'honte -
Sur la barque de Caronte,
Toutes les eaux sont noires -
Je suis O,
Et j'ai chaux,
Et jusque là tout va bien -
Mais tout le reste est bizarre!
Comme un songe du Levant! -
La vierge dors.
Le roi se meurs.
«La bouche d'Or»...
La peur. La peur...
La terre tourne autour du soleil;
La vie me tourne autour du sommeil...
Ne t'assoies pas sur ce fauteil -
Tu te pentiras.
Ne t'assoies pas
Tu te pentiras,
Ne sois pas,
Tu te pentiras,
Je ne sais pas quoi,
Tu te pentiras...
La Fointaine m'ecrivais des lettres de son moulin;
Alphonse Daudet chantais
Les fables du gris matin;
La fontaine où je buvais
(Oh mon Dieu que je suis faible!)
Avais de l'eau et du vin
Elle avais des jolis rêves -
Mais un jour j'ai découvert
Que caché dérrière les arbres
Sous le lit et mes couvertes,
Sur les colomnes de marbre,
Il y avait un chemin
Fait de noircis boulevards,
Fait de cris et de chagrins,
De terribles cauchemars,
Dans chaque joli visage
De fille, bête ou object,
Et dans chaque paysage
Il n'y avais que nuage,
Mensonge, horreur et regret.
J'ai compris que l' au de-là
Des choses qu'on voit ici
N'a qu'illusions d'une foi
Qui ni serve ni suffit.
J'ai vu sans ombre ni doute
La vérite derrière l'herbe:
Ni vert', ni frèche, ni douce:
Mas comme le monde: Mèrde!

Monday, July 23, 2007

Estava à Janela do Sonho…

I

Sonhar é cavalgar por entre as estrelas,
Pôr uma cerca em volta do Infinito,
Fazer parte das coisas e bebê-las
Como quem bebe um cálice proscrito.

Sonhar é navegar sem tempestade,
Partir, zarpar de todas as nascentes,
É iludir o dogma da Verdade
E a sensação de Morte nos Poentes.

Fechar e abrir os olhos num segundo!
Partir sem ter atrás obrigações!,
C’o coração rindo em redor do Mundo,
C’ o corpo inteiro em celebrações!

Ah!, poder ser maior que o firmamento!,
Maior que as águas em exaltação,
Maior que o Homem que guardamos dentro!:
Ser-se senhor da sua condição!

Ah!, eu sonhar abrir uma janela
Que dê para a avenida ou para um rio,
E desse gesto simples ver por ela
O dissipar das chagas do vazio…

Ser alma inteiramente, o interior
Do Universo, Reino dos Sistemas,
E nesse campo recolher a flor
Que será fruto, como nos poemas…

Oh, sim!, sonhar, sonhar, sonhar Amor!,
Ter paz nos dias, mesmo que pequena,
E imaginar que apesar da dor,
Viver, esse tormento, vale a pena…

Lisboa, 04/12/96

II

E acordar depois, com o sonho por metade,
E ver o peso bruto da verdade…

Que pena!

Lausanne, 29/11/04

III

Estava à janela do sonho
A ver passar os soldados,
A ver tombar os poentes
Entre dois lagos parados.

Estava à janela do sonho,
Como à janela da vida,
Criando mundos de gente
Bem mais humana e mais viva.

Estava à janela do sonho,
Como à janela de mim,
Jogando às cartas com os dias,
E apostando no Fim.

Estava à janela do sonho,
Mas veio um vento de norte –
Logo fechei a janela –
Mas tinha entrado: Era a Morte.[1]

Lausanne, 29/11/04

[1] Nota do Autor: Versôes alternativa: Mas acordei: Era a Morte. /Mas foi já tarde: Era a Morte.

Sunday, July 22, 2007

Heliocentrismo - Que Bom É Ser O Sol! - Versão Poética (Ou Um Delírio no Espelho)


O puro génio quer-se livre e, como tal, é amoral e irresponsável.

Que pena é reconhecer-me um miserável...


(Lisboa, 21/12/02)

Saturday, July 21, 2007

Digressão

A Natureza é um estado de alma:
Símbolo e signo das vontades do Homem.

O corpo é uma ideia da Ciência,
Que é o mesmo que dizer
Religião.

Um mar bravo é o meu peito sem calma.
Árvores dentadas são ratos que me roem.
No campo, a paz, o sonho, a paciência…

O real sou eu a acontecer,
É a minha sensação.

E eu,
Que sou?

E tu amor?

E os dois?

Dois mUNDOS
Separados do Mundo
Cuja felicidade vai sendo adiada
Para depois
E depois
E depois
E depois
E depois
E depois…

Lisboa, 12/12/96

Friday, July 20, 2007

Declaração

I

«Não… Não vás já…
Gostava que esperasses.
Gostava que ficasses
Mais um pouco.
Talvez te zangues – Não te zangues.
Talvez me ignores – Não o faças.
Talvez me julgues louco – Não o sou.
Talvez um dia entendas o que é estar como estou –
Mas não sendo comigo,
Que benefício me traz?

Abraça-me – Porque não me abraças?

Todos dão vivas ao Mundo.
Tu dás vivas ao Mundo.
Tu queres ter o Mundo.
Eu desejo apenas o jazigo
E a paz.

Mas não foi por isto que te pedi que ficasses;
Gostava de dizer-te que… Bem… Sabes… Sinto e…
Aquilo que por vezes nós podemos…
Aquilo de que nunca nos esquecemos…
Vem doendo e…
Espera! Só mais um segundo!

Ah!, E eu que quero apenas ser feliz!
Será isso assim tão absurdo?!»

Lisboa, 13/05/94

II

«Estranho, o estar aqui, pensando uma Utopia…
Saber que é isso e ter sabor a pouco.
Ver o mesmo céu dia após dia,
Ter tédio dele e desejar um outro…

Estranho também o estares aqui comigo,
Eu, o eterno sonhador,
Que tenho o Impossível como abrigo
E o Caos como Deus meu criador;

Estranho ser estranho e eu já estar diferente;
Tu teres partido e eu falar sozinho;
Poder estar só ou existir mais gente;
Morrer de inércia, escolher ter um caminho…

Estranho o silêncio quando baixa a noite,
E se mantém quando sobe o sol:
Eu falo, nós falamos, muito afoitos,
E um tenebroso silêncio nos engole.

Estranho ficar quando todos partem,
Estranho eu amar se só há ódio em mim.
Ser eus que se baralham e repartem,
E jogam poker apostando um fim…»

Lisboa, 08/01/01

III

(Risos)

«Idiotices…

O que me interessa isso?
Não é normal, perfeito. Tanto se me deu.
De qualquer modo, estou sempre contrafeito.
Que é o que fiz?
Um gesto! Aconteceu…

De que me serve então preocupar-me?
Tudo é penúria, tudo é exaustão.
A partir daqui vou ausentar-me
Do pensamento e da sensação.

Assim, neste decreto do absurdo,
Declaro hoje, aqui, em frente a mim:

Vou dormir para sempre: Que me importa o Mundo?
Cortar os pulsos: Deixar saír esse veneno imundo
Que me faz respirar tão malamente,
Que me faz suar com ple ta men te…

E ficar pálido e frio como o marfim! …

Bruxelas, 26/05/04

Do que Ocultava o Silêncio…

I

Tu, criança,
És o menino que eu já fui,
És o pássaro que voava livre no céu,
És o cabide
Pendurado no armário,
Que aos poucos e poucos se vai desprendendo
E vai exigindo o que é seu.
Tu, criança,
És o vento,
Que se escapa a todas as mãos, a todos os momentos,
És o luar aberto e misterioso,
Quando gira
No seu preguiçoso
Movimento…
Tu, criança,
És a flor que embeleza os campos soltos
E quando eu posso
Colho p’ra cheirar. –
Que não te importes:
O teu perfume é ar
Para os meus pulmões.
Ar que eu já não tinha; estranho ar!
Tu, criança,
És o horizonte,
És o cume do monte,
Todas as facetas da alegria,
O princípio e o fim do mar.
Tu, criança,
És a parcela perdida da infância,
És o sol, a luz, a água, a vida,
Um turbilhão de verdes circunstâncias
Saídos de uma caixa de magia.
Tu, criança,
És tudo o que eu fui e já não sou,
Por isso tu és menino e eu sou louco,
Por querer sempre demais, fiquei com pouco,
Mergulhei num castelo de ilusões…
Sonhei
Alto demais, suBI,
suBI,
suBI,
suBI,
Fui feliz,
E depois
CAí
Aos t a
r m
bo õ .
lh es . .

Tu, criança,
És tudo aquilo por (que) quem cresce aspira,
És tudo aquilo que um homem nunca tem;
Eles recordam em ti o que perderam,
E só contigo e por ti serão alguém…

§

Um adulto do Mundo
Por todos os adultos do Mundo…

Lisboa, 25/12/96

II

«Das Noites Negras em que me gritáste,
Dos Dias Sujos em que me humilháste,
Das Horas Tristes em que fui teu chão,

Ficou coberto pelo teu silêncio,
Por esse teu orgulho vil e denso,
Este tardio pedido de perdão…»

Lausanne, 29/11/04

III

«Sorrisos do Futuro?
Terras de Além-Mar?
Festim que demora?
Que sois?

O Presente é escuro.
Servir e calar…
Ser Criança agora!
Para quê depois?»

Sê criança agora – Nada há depois…

Ficcções do Amor (Parte Dois): O Paúl

Chegaste e eras ar, agora sei
Que era só ar o rosto que tiveste.
Pois no oráculo dos teus olhos decifrei
O medo, a raiva, a fome, a sede, a peste.

Talvez já estejas morta e eu, aqui,
Procure o teu corpo à tona d’água;
Mas só porque te olhei e não te vi
Tu vens ao cimo e não me dizes nada.

Talvez seja eu o morto e tu, ao lado,
Não tenhas mãos para me abrir a porta
Nem haja porta, mesmo, para abrir.

Talvez sejamos nada, simples fardos
E este fogo que arde desde a aorta
Seja o desprezo que sinto em existir...

Lisboa, 28/02/00

De um Poema de Natália Correia

Tuesday, July 17, 2007

No Fio da Meada

I

No fio da meada está o desespero.
Por isso eu vou cortar o fio.
No fio da meada está um barco negro
Descendo por um rio.

No fio da meada está a minha fome
De ser grande como o firmamento.
No fio da meada está escrito o meu nome
Que é mais pequeno do que sou por dentro.

No fio da meada está esta certeza
De ter a vida sempre amordaçada.
No fio da meada ganho essa destreza
De tirar pedras de qualquer entrada.

No fio da meada busco a alegria
Que não sei porquê me vem faltando.
No fio da meada dou as mãos ao dia
E para a minha festa o vou chamando.

No fio da meada mora essa vontade
Que faz de um mendigo um Imperador:
No fio da meada encontro a Liberdade
E o amor, e o amor, e o amor!

II

Parca, eterna Parca, da mentira velada:
É meu o meu Fado, tu não
Fias nada.

Parca, triste Parca, de Horácio e Homero:
Não terei caixão:
Eu sei o que quero.

Parca, feia Parca, tão vil e mesquinha:
Tu nada acometes:
Eu comando a linha.

Parca, grossa Parca, horrenda e temida:
Já medo não metes:
Eu mando na vida!

Lisboa, 02/04/01

Thursday, July 12, 2007

A Rosa

Era uma rosa num lindo jardim,
Ela brilhava e dançava ao vento;
Vermelho rubro, cor de carmim,
Ceres lhe dera um perfume bento.

Era uma rosa no meio do verde,
Ela cantava e contava o tempo,
Cor de cereja, de rosa veste,
Tombava, erguia, sento, não sento.

Era uma rosa trepando um muro,
Rasgando o ar como uma criança;
Cor de ginja, vermelho escuro,
De olhá-la, só, o coração descansa.

Era uma rosa contando os dias,
Suave, quebrava o seu caule fino;
Lembrava sonhos, esquecia a vida,
Até cair nas mãos de um menino…

Lisboa, 18/04/92

Nós Dois

I

Ainda o Sol não tinha bem pousado
Sobre os telhados altos destas casas
E já eu impaciente, abotoado,
Te esperava com o coração em brasas.

Vieste: Esplêndida! Linda! Deslumbrante!
Lembro ter ficado sem palavras.
E com o passo lento e trem’licante
Fui beijar-te as mãos bem perfumadas.

Podias ter sorrido com o ar frio
E superior de muito mulherio
Tomando-te Raínha dos Mortais:

Mas tomaste antes o meu rosto caído
E com um olhar mais terno que Cupido
Beijaste-me até não poderes mais…

II

Ser Humano
É sonhar.
Nós dois sempre tivemos consciência
Dessa verdade óbvia mas velada.

Do chão plano
Brota este pilar:
O nosso amor, firme e em emergência
Como uma flor de campo, bem plantada.

Porque por nós passaram poucos sóis
E construímos juntos esta casa
Reclamamos para nós todo o espaço em redor
E sentimos a força de milhares de homens:

Somos novos, somos tudo:
Somos os donos do Mundo.

Fazemos parte do campo onde pascem os bois,
Somos um pouco do pássaro de que ganhamos asas:
Germinamos em nós aquela flor
D'onde tudo surgiu e onde todos comem…

III

Nós dois
Não acreditamos no Destino.
Não fazemos parte deste Mundo de tolos.
Nós dois
Tocamos com nossas mãos o sino
Que tranforma em risos os antigos dôlos.

Nós dois
Estamos para além dos outros
E acima do comum desgosto que aí passa;
Nós dois
Escapamos lestos do sufôco
Causado pela junção bestial das massas.

Nós dois
Tomamos de nós o máximo tempo
Porque não fugimos de ninguém, porque tudo está certo.
Nós dois
Abrimos as portas do nosso convento
E rezamos ao Amor a céu aberto.

Nòs dois
Ascendemos para além destes muros
E somos e estamos para lá da Hora.
Nós dois
Vivemos com as almas no Futuro
E é lá que a nossa vida se demora.

E mais extraordinário que isto tudo,
O que ficará para depois,
É que tu não desgrudas, eu não desgrudo,
E nunca fomos dois…

Lisboa, 19/12/96

«Amor em Tempos de Cólera»

Cai a semente no meio do campo,
Desce fundo, talvez por engano;
Revolve a terra, gasta tamanco,
Trabalha, esfria, e hoje é ramo.

Pousou em tempos semente velha,
Pobre e gasta mas cheia de amor;
Rega com força por gasta telha,
Trabalha, sua, e hoje é flor.

Bailou outrora semente fraca,
Em terras frias e tristes germina;
Protege e cuida alma beata,
Trabalha, cansa, e hoje é vida.

Sob a abóbada do grande céu
Dançou um dia tamanha flor;
Por entre as balas, de frio morreu:
Cavem a cova ao agricultor.

Lisboa, 08/12/92

Tuesday, July 10, 2007

Extâse e Regresso

Um dia claro, no céu do dia um’ave
Voando além das margens desse céu.
Se acordado, sonho. O sonho é a chave.
Entre a ave e a terra estava eu.

Um arco-íris seguindo a grande chuva;
Um vaso nas mãos de uma criança;
Uma mulher escultural pisando uvas
Que eu bebia em horas de bonança.

Uma mão pousada no meu ombro,
Um ombro encostado à minha mão,
A minha mão tocando Galateia;

Oh, a vida!, a vida!, grande assombro!
Se bem me sinto é porque sonho e não
Por ter o gozo dela na ideia!

Lisboa, 27/03/94 - 29/12/00

Monday, July 9, 2007

Mensagem (A Fernando Pessoa)



Eis esses heróis dos Novos Mundos!
Eis os sonhadores no mar salgado!
Eis os mortais, esses moribundos
À sua ambição acorrentados!

Eis os Homens, raça de infelizes,
Subindo, porém, a um pedestal!
Eis a Miséria e o Horror, esses Juízes
Da Vida, o Supremo Tribunal!

Vultos na treva tacteando a ruas
Sob a lanterna pálida da lua,
Em busca de um sentido para a vida:

Eles são nossos, estão adormecidos,
Sonham com naus e galeões perdidos
Nesses desertos de água enfurecida…

Delírio V - (Cinco Traços Gerais Com Que Me Minto...)

I

Tive um delírio estupendo
Que me deixou agastado:
Vi uma Hidra rompendo
Do meu peito estilhaçado.

Tinha umas cinco cabeças
Cinco caudas, cinco línguas,
Virou-m’a vida às avessas,
Deixou-me no nada, à míngua.

Os deuses que nada podem,
Nada têm, nada são,
Chamaram-lhes: Cinco Dolmens
Pela sua condição.

Os Homens que estão perdidos
Nada valem, nada têm
Chamam-lhes: Cinco Sentidos…
E só por eles se regem…
II

Como podem cinco dedos
Perdidos por pés e mãos,
Desvendar esses segredos
Que há na Civilização?

Como podem cinco braços
De percepção e de dor,
Desvendar todos os traços
Que há no rosto do Amor?

Como podem cinco pontos
Cardeais das sensações
Tornar servis esses monstros
Que nos servem de emoções?

Como podem cinco pólos
De atracção e de ruído
Desenrolar esses rolos
Que são os Cinco Sentidos?

III

Seguindo cinco Destinos,
Erro na bruma e no bréu,
Carregando cinco espinhos
Que um Anjo Negro me deu.

Ao bater de cinco sinos
Em cinco mosteiros densos
Saem de cinco caminhos
Cinco demónios cinzentos:

Cinco seres agrilhoados
Em cinco caves de medo,
Nas cinco prisões do Fado
De cinco Reinos de Cedro.

São cinco espectros pisados
Por cinco longos degredos,
Por cinco vidas os escravos
De Cinco Sentidos Negros...

Os cinco, de braço dado,
Rompem direitos a mim,
Erguendo cinco cajados,
Com já, dos dias, o Fim…

Por cinco vezes giraram
Em redor de cinco luas;
Das cinco me vomitaram
As suas carcaças nuas.

Depois de cinco rodadas,
De cinco gritos de horror,
Desventraram cinco espadas
Dos coldres do desamor.

Com todas cinco eriçadas
Até ao termo do espaço
Deram cinco gargalhadas
E cinco urros devassos.

Fiquei assim cinco vidas
Assistindo ao ritual:
Cinco brutais investidas
À minha alma mortal.

Depois de cinco tormentos,
Cinco penas, cinco assombros,
Vi cinco punhais cinzentos
Entrarem-me até aos escombros:

Os escombros de cinco sonhos
Que tive o arrojo de ter,
De cinco céus enfadonhos
Fadados p’ra me perder.

Os escombros de cinco muros
De esperanças por cumprir,
De cinco Édens Futuros
Que só ficaram por vir.

Fiquei-me então cinco dias
Deitado no chão queimado,
À espera dos cinco guias
Dos cinco portões dourados

Que fecham as cinco entradas
Dos cinco palácios claros
Onde dormem sossegadas
As cinco filhas do Fado.

Mas cinco dias passaram
Sem que passassem por mim.
Pele e boca me secaram,
Sequei-me no pó ruim.

Mais cinco vidas soaram
Como sinos de um convento,
Mais cinco vidas secaram
Os meus ossos pardacentos.

Cinco vidas que murcharam
Como uma rosa ou um lírio.
Cinco vidas que acabaram
Por não ser mais que um delírio:

Foi como um sonho que tive,
Talvez que tive sem ter –
Que o que se tem só se vive
Depois de nisso se crer –

Porque eu não tenho nem sonho
Pois qualquer Fé me é estranha,
Ponho nos dias medonhos
Duas mãos cheias de manha:

Digo da vida que é nada
Sabendo que estou aqui,
Acuso-a de ser parada
Depois que já me movi.

E ela, suavemente,
Sem me falar nem me ver,
Passa por mim insolente,
Deixando-me acontecer.

E ela, suavemente,
Sem me forçar ao que sou,
Deixa-me ter, inocente,
Os frutos que me deixou.

São restos do que escolhi,
Minhas feições inconstantes,
Das frases com que escrevi
Os dias mirabolantes.

São restos, apenas sobras,
De cinco partes de mim,
Origem das minhas obras,
Dos troços por donde vim.

São restos… Traços esquecidos
Que rabisquei pela vida…
Esboços de planos perdidos
Ao longo dessa Avenida…

São restos… linhas esfumadas
No fumo dos alaridos…
Além de cinco jornadas,
Aquém dos Cinco Sentidos…

IV

Nós os Homens-Deuses possuídos,
Reis dos Reinos de Aquém e Além nós,
Julgamo-nos Senhores, Seres Escolhidos,
Escolhendo ignorar que somos pó.

Nós os Bichos para sempre sós,
Os Brutos a Lordes promovidos,
Julgamos dominar de beta a ró
Mas não domamos sequer Cinco Sentidos…

V

Somos vazios por mais que nos sintamos.
Somos cansados por mais que nos sentemos.
Nós somos escravos, nunca somos amos:
E apenas nós a nós mesmos perdemos.

Somos cansados, por mais que não corramos,
Somos vazios, até se nos enchemos;
Este poço foi feito pelos anos...
Se não bebemos, que então nos afoguemos...

Que depois nos façam cinco enterros…

Delírio IV

Há delírios em tudo o que conheço.
Todo o Homem é insuficiente.
Quero-me e quero mas não me apeteço.
Doente, vou doente e sou doente.

Fumo cigarros de ópio e de veneno;
Tenho visões de vidas que não tive;
Procuro abstracções e um mais ameno
Sonhar do que este sonho que retive.

No meu quarto sombras e figuras;
No meu corpo marcas que não fiz;
Um diabinho faz-me diabruras…

Na minha mente ideias que não quis.
Ordens loucas, fúrias inseguras;
Sou corda de um novelo que desfiz…

Delírio III

I

Meu nome é Joaquim Sem-Apelido.
Nasci num poço escuro: Portugal.
Um dia fiz a mala do Destino
E viajei por mares de terra e sal.
Então eu vi que o Mundo é indefinido,
Uma aldeia, simples e global.

II

Ficando inconformado com o que vi,
Confuso por me ver um aldeão,
Meti-me num saloon onde bebi
Até ficar prostrado sobre o chão.

III

Depois do que bebi na noite que passou
Não sei se durmo ou se isto é o real.
Mas este medo espesso que ficou
É a origem bíblica do mal.

Traços de giz numa folha branca
Que fica suja mas nada se lê:
Isso é a vida nos dias: uma mancha,
Como, nas toalhas, o café.

Um golo no cognac, n’águardente,
Um golo de saliva dado em sêco,
Um golo de raiva amordaçada.

Bebo p’ra esquecer que sou demente,
Qu’ o Mundo é, no Universo, um bêco
Com a importância e a dimensão do Nada…

IV

Então, três vezes me ofertei a morte
Estendendo para o espelho um grande lírio.
Três vezes recusei a minha sorte
Imerso que estava num delírio.

Três vezes me bateram ao postigo
Para indagar se tudo estava bem.
Três vezes respondi que «estar comigo
É o único bonheur que me convém!».

Três vezes escrevi o suicídio
Nas costas de uma folha amarrotada.
Três vezes premi esse gatilho
Do pistolão nervoso que é a mágoa.

Então, urrando, e um pouco entre suspiros,
Entre o soluço, a solidão e a frágua,
Por três vezes eu disparei três tiros:
Rompi, parece, uns quantos canos d’água…

V

Quando acordei o sol ia subido.
Não me sobrava, porém, o amor-próprio.
Sob a cama? Debaixo dos sentidos?
Busquei-o então nas ternas mãos do ópio…

VI

Ah!, que cheiro bom!
Sempre gostei do tabaco!
Pom! Pom! Pom! Pom!
Quão forte soa o meu coração fraco!

Pom! Pom! Pom! Pom!
Ta-ta-ta-ta!
Meu coração! Então, que se passou ?
Há festa, há?

Pom! Pom! Pom! Pom!
Tu-tu-tu-tu!
Kabom! Kabom! Kabom! Kabom!
Meu coração, então, és mesmo tu?

Fumar faz bem,
O Mundo põe-se a nu…

VII

Uma fanfarra desperta lá em baixo
O tumular silêncio destas ruas.
Chego à varanda para investigar:

Co’ a breca! Um homem de penacho!
E aquela gorda com rosto em meia-lua
Dançando qual Ceres num altar!

Isto é que é vida!
A aldeia, que vinha andando morta,
Rompeu da turbidez para um festim:

É uma chegada ou uma despedida.
Mas os locais vêm de porta em porta
Deixar convites em sopros de clarim!

«Juntem-se à nós amigos da Fortuna,
Venham beber do vinho, comer pão,
Provar as broas, o centeio, o mel!»

E segue a procissão como uma tuna,
Enquanto eu sigo na minha Solidão
Neste pequeno quarto de motel…

VIII

FON! FON!

Ah esta fanfarra, que som!!!!!!

POM! POM!

Ah esta fanfarra, que bom!!!!!!

BOM! BOM!

Ah esta fanfarra, que sou?!!!!!

VOM! VOM!

Esqueleto que festeja o que passou…

(…)

Passons.

IX!
Que som! O abominável é bom,
Por uns momentos…
Interrompo tudo o que fazia:
Agora faz sentido este cinzento,
Agora toda a noite se fez dia!

É neste instante que eu imagino o mar…
E uma praia aonde deixo em molho
As mágoas mais pungentes…

O ar
Parece puro.
Por isso sei que sonho…

Como poderia, pois, sem estar sonhando,
Compreender a sensação confusa
Que parece enfim tornar-se clara?

Tudo é incerto – O mar vai-se alterando.
E da maré, outrora inerte e muda,
Sai um dragão de fogo que me abrasa…

X

Foi o meu regresso à tábua rasa…

XI

Meu nome é Joaquim… Indefinido.
Nasci num vilarejo trivial..
Um dia fiz a mala, prevenido,
Pois queria conhecer o Universal.
Mas o que descobri não tem sentido:
Tudo é a minha aldeia, e me faz mal…

Delírio II

Deus, meu Pai, algo me mói,
Cá por dentro, alguém me rói,
Qual a causa do meu mal?
Será excesso de gosto?
Provo a vida… Não tem sal…

Saio grosso do meu leito,
Vejo fora alguém suspeito,
Traz escondido um cabo forte,
(Era espesso aquele mosto!)
Trar-me-à amor ou morte?

Desse vulto eu ganho medo,
Volto à cama enquanto é cedo,
E aí faço a minha cova,
Meu valado mais profundo –
Deixo a vida para as trovas…

Sim, respiro mas em vão,
Se sou a minha negação:
Quero mudança que mova
A base chã deste Mundo
Mas receio a coisa nova…

Oh!, carcaça sequiosa!
De tolice, só, abundo…
O poema sabe a bispo –
Que farei agora disto?
Um soneto ou uma glosa?

Delírio I

… E fiquei louco depois daquele dia
Em que uma luz entrou no meu abismo.
Era uma paz, então! E eu dormia…
Alguém me despertou com um grande sismo…

Uma mulher gritava em certo leito,
Um homem me batia impaciente…
«Que situação!», pensei, não tinha jeito!
A que planeta vim tão de repente?!

Veio depois alguém, trajando branco,
Que me pegou e disse: «Este é ruim!»
E despejou-me ali por sobre um banco…
Então eu fiquei rubro, mau, carmim,

Cresceu-me barba e pelo, e unhas, cascos,
Fiquei com grandes dentes, e com escamas;
E os olhos, vidrados como frascos,
Pareciam dois tremendos lança-chamas.

E foi então que enchi o peito de ar,
Puxei o tronco atrás, as mãos à frente,
E expirei, num sopro de espantar,
Um fogo luminoso, horrendo e quente!

Tudo acabou, ali, naquele instante,
Eu como estava e o que estava em mim;
Aquela multidão asfixiante,
E essa origem suja de onde vim.

Mas oh!, já era tarde, porque então,
Já eu era eu e vida, enfim!
É pois por plena e pura prevenção,
Que neste dia enorme eu voto «Sim»!1

Nota Política do Autor: "Este dia enorme" é o do segundo referendo nacional sobre a legalização do aborto em Portugal.

Mosaicos - (Ou Um Poema Fotográfico V)

I

Vestido azul do mar, mala ancorada,
Dona-de-Lá prossegue o seu caminho;
Da sua boca, numa expressão vaga,
Explode um murmurio, entre o uivar marinho:

– «Ai, a saudade que há na Alvorada!
Praias do Algarve, montes que há no Minho!,
Onde deixei amores por quem definho,
Além da bruma que me está vedada![1]

Onde a saúde? Onde os meus amores?
Onde as horas, risos que perdi?
Aqui no cais, dispõem-se os horrores,
Enquanto partem sonhos que esqueci.

Ah, o peso de tudo em que eu medito!
Oh, Tanta é a exaltação! Tanta a repulsa!
Ahhhhh, o horror! O horror! O horror! » – (Um grito)… –
«Regressa Amor!» – E chorou convulsa…

II

… – «O pessoal de lá sente-se só!;
Mas nós por cá também!!» –
Gemeu uma pobre quarentona,
Despedindo-se,
Do cimo do seu ferry que atravessa o Tejo.

§

Rasgando o forte vento a 12 nós,
O barquito avança,
Enquanto uma mão-cheia de lenços
Vai acenando um adeus l e n t o,
Cho ro so,
De pri men teeeee…



(Gesto pesado em que me revejo…)

§
«Adeus!,
Adeus!,
Escreve-me!,
Não esqueças!

Manda notícias antes que eu pereça!
Manda notícias antes qu’eu…»



(E pereceu…).

III

…No banco ao meu lado
Alguém solta um bocejo…

«Mas que diabo?!
Que é este alarido?!»

É um velho em farrapos,
Um mendigo,
Que, parece, há já umas semanas,
Tem vivido aqui neste lugar…

Sem ter qualquer dever em que pensar,
Vai cravando os olhos nos traseuntes
À espera do cigarro.

Nunca pediu dinheiro;
Nunca aceitou que comer;
É um filósofo nato:

Para ele a vida é como um escarro,
Excedente de um breve ser de barro,
Que se espezinha depois para o esconder...

Braga, 29/07/96
[1] Nota do Autor: O Passado…

La Finestra, L'Amor, La Solitudine... (Ou Um Poema Fotográfico IV)

Eu vim só ver se acaso tu chegavas.
E o caso é que por casa é um vazio.
Eu vim só ver, amor, mas tu não estavas...
Estava o Inverno, fruste, feio, frio...

Penitências - (Ou um Poema Fotográfico III)

Que dia angustiante e repetido!
Que dor ventricular!,
Qual foi, meu Deus, o crime cometido
P'r'á vida me secar?

Lisboa, 12/04/96

Fraquezas - (Ou um Poema Fotográfico II)

De pé, há horas, na fila para os dadores de sangue.
Onde estarão os doadores de risos?
«Perdoe-me, senhora, estou tão frágil!
“Posso-me” sentar aqui consigo?».

Lisboa, 13/04/96

Sunday, July 8, 2007

Segredo

Um dia achei a chave do Reino de Deus,
Abri a porta e vi que esse Reino era meu:
Tantos sonhos tristes, tantos pesadelos!,
De quando me suavam o corpo e os cabelos!,
Com medo de tudo o que mexesse ou não,
Com medo, até, da minha excitação!
Abri essa porta do Mito e da Lei,
E só vi Desordem, só o Caos achei…
Deus é uma núvem sobre os Homens que dormem,
Carregada de chuva, impedindo que acordem…
Sob essa núvem, também eu pairei…
Se eles dormem ainda, porque foi que acordei?

Saturday, July 7, 2007

As Cores Probidas (Ou «Secrets From the Behive»)

Estão proibidas as cores vãs do Desespero:
Não desejamos a Morte cá em casa.

Estão proibidas as cores avaras da Agonia:
Se algo o agita passe pelas brasas.

Estão proibidas as cores trémulas do Medo:
Já muito há nesta vida que assuste.

Estão proibidas as cores de Crenças Frias:
Religiões, Destinos, são p’ra nós embuste.

Estão proibidas as cores estáticas da Esperança:
Não há nada aqui para esperar.

Estão proibidas as cores Escuras da Campa:
Quero viver para sempre quero ficar
Novo e potente combatendo o mar…

Lisboa, 06/10/96

Friday, July 6, 2007

Poema (Homenagem a Miguel Torga)

Ouve,
Não tenhas medo,
É um poema;
Um misto de oração e de feitiço,
É o mais intenso dos mistérios,
Um dilema,
É cometer com as palavras adultério
E ter orgulho nisso.
É um perfume denso num harém distante,
Um compromisso
Com as frotas do Levante.
É uma vontade de viver constante,
É uma escrita aberta e natural.
Com as palavras abrimos corações;
Como a chave de portas encobertas,
Como a passagem secreta p’r’ó portal
Das nossas emoções.
É um cofre, um armário, uma gaveta,
Onde guardamos os sonhos pessoais;
É no que somos talvez um pouco mais,
E um pouco mais das nossas sensações.

Ouve,
Não tenhas medo,
É um poema,
Não fujas dele mas corre ao seu encontro,
É uma flor desabrochando,
Um teorema,
Que tu vais desvendar ponto por ponto.
Juro, é parte de ti, ser consciente,
E o lençol de todas as nascentes.

E ouve,
Não tenhas medo,
É um poema,
Espera por ele à noite na ruela,
Deixa-te embalar ao som do vento,
Faz dele emblema,
Põe-no na lapela,
Enquanto docemente passa o Tempo;
O Tempo que tu sentes mas não crês
Que possa, palpável, existir…

(Poder sonhar é também poder rir!,
Poder sonhar…)



Depois senta-te e ouve o que sussurra,
(Com voz doce, calma, prasenteira)
Quase inaudivelmente ao teu ouvido:

«Eu sou o mar das tuas noites escuras;
Quando subir ao céu a lua cheia,
Quererás tu partir comigo?».


Lisboa, 16/07/96

Thursday, July 5, 2007

De um Retrato

Deixei-me absorver no teu retrato –
Que linhas!, Que feições! Tamanho porte!
E de joelhos, com submisso aparato,
Qual provençal jogral faço-te a côrte.

Poemas, Endechas, cantilenas,
Sofridos gemidos interiores,
Mortes de amor, desmaios, grandes penas,
Celebrados em versos superiores!

«Princesa – diziam – És o meu tormento.
Sucumbo. Padeço. É uma agonia.
Aqui, nos rins, sinto um golpe imenso;
Alí, nas veias, uma apoplexia.

Dá-me um auspício , não sejas tão fria,
Tão régia, tão deíca, amuada!
És o meu terço por onde, a cada dia,
Rezo às Forças Maléficas do Nada.

Alva mulher, do marfim mais puro,
Puro demónio que Deus renegara,
Teu brilho mítico ilumina o escuro,
Teu olhar esfingíco turva as manhãs claras!

Flor rara da maior montanha
Que resiste à neve e ao temporal,
A tua graça lírica é tamanha!
O teu perfil tão fenomenal!

Fídias em vão ostenta os seus trabalhos
Às gentes ocupadas deste Mundo –
Se vissem teu retrato, sem detalhes,
Mesmo na distância, num segundo,

Logo faziam de ti o seu modelo
De Beleza Ideal e de postura:
O passo leve, o arranjo dos cabelos,
Tudo em ti redifine a formusura!

Sim, figura da tela, tu és tremenda!
És fogo brotando nas candeias,
Ninfa coberta da mais fina renda,
Grossa contusão nas minhas veias!

Sim, és bela, Deusa fabulosa!,
Fustigas, cegas, perdes homens bons
Com a tua doce voz melodiosa,
A harmonia incrível do teu tom!

Ninguém o nega (Oh!, Quem poderia!)
Ninguém sequer resiste aos teus encantos!
Em ti as minhas faltas já se espiam,
E tu és o motivo dos meus prantos:

Fruto somente, semente que nasce
Da farta terra p’r’ áscender aos céus,
Tirana!, fazes com que o Sol se agache,
E trema como Macbeth tremeu

Quando veio p’ra si toda a Floresta
Levá-lo para o Reino dos Defuntos –
Porque é a tua graça tão funesta
E são tuas carícias um conjunto

De dores e desgostos e torturas?!
Ah!, minha ilusão, esfinge encoberta,
Senhora de tão clássica figura,
Górgone, Dríade ou Clitemenestra,

Ganha compaixão dos meus gemidos!
Não me deixes a definhar assim!
Mata-me num lance destemido
Ou sai desse retrato empedernido
E vem, qual cera, derreteres-te em mim!»

Lisboa, 15/04/93 – 10/12/00

Wednesday, July 4, 2007

Mal-Me-Quer

Por trágica partida do Destino,
Fui neste bom Domingo passear
Ao Rio Mondego, belo e cristalino,
Para colher algum do puro ar.

Num infortúnio quase desejado,
Voltei-me, como instintivamente,
Para a margem, onde, repousado,
Jazia o teu corpo excélseo e quente.

Fiquei sem sangue. Mudo. Extasiado.
Bestifiquei-me em trémulo alvoroço:
Colhi uma flor, então ali plantada,

E comecei forjando alucinado:
Mal-me-quer, bem-me quer, mas muito, pouco…
Nada! E tu soltaste uma gargalhada…

Lisboa, 07/01/94- 09/12/00

Tuesday, July 3, 2007

Fragmentos (De um Completo Desalento - Incompleto Só o Que Tenho Dentro)...

I

Tens o sono,
Tens a vida,
Tens a morte…

II

Pouca-sorte, pouca-sorte, pouca-sorte…

III

E por ti espero ao longo dos meus dias,

IV

Como espero?
Porque espero?
Por que espero?
De quem espero novas novas de alegria?

V

Pouca-terra, pouca-terra, pouca-terra, que agonia!

VI

A espera é o lugar do desespero em que se antecipa a morte e a vida se adia.

VII

Pouca-sorte, pouca-terra, pouca-sorte, paranorte passaporte paraamorte,
Papaléguas, dámetréguas, dámevidas…

VIII

Pois…

Tens o sono,
Tens a vida,
Tens a morte…
Tens talvez a fome de ganhar…

VI

E que sorte não teres sorte para amar!

(Lisboa, 17/12/99)

Sunday, July 1, 2007

Em Frente (e De Mãos Dadas)

I

Em frente andamos com as mãos atrás das costas
E as esperanças volvidas p’ra poente.
Em frente erguemos os gumes da revolta
Pondo nas mãos do Mundo o nosso ventre.
Em frente vamos, p’la glória que é devida,
Recolhendo[1] o fruto da semente.
Em frente recuamos, depondo a nossa vida
Nas mãos daquele Deus que não se entende.

Lisboa, 24/12/98

II

Avançarmos na vida
É recuarmos p’r’á morte.
O perurso era armadilha;
Pouca sorte…

Paris, 10/06/04

III

Avançar com a Fé
É recuar com a Razão.
Avançar com a Razão
É recuar com o Sentimento.
Avançar com o Sentimento
É ser caos, exaustão,
Um Labirinto por dentro.

Se, quando avanço, recuo,
Para quê o Movimento?

Paris, 10/06/04
[1] Nota do Autor: Com as mãos…

Canção do Bandido

Sou um pobre bandido
Sem eira nem beira
Não tenho um sentido
Nem talvez o queira;

Vagueio no escuro,
Preparo armadilhas,
Disseco o futuro
Numas cigarrilhas;

No vazio das ruas
Procuro emoções,
Mas nem com gazuas
Abro os seus portões;

Vejo atrás dos muros,
Por dentro dos bêcos:
Apenas uns duros
Roubando uns pategos.

Busquei sob as pedras,
Sobre os candeeiros,
Junto às torres vedras
Lá de um pardieiro;

Perfurei as estradas,
Escavaquei passeios,
E só vi ossadas
De uns esqueletos feios;
Sem querer desistir
Investi mais fundo:
Não tenho Porvir,
Que me importa o Mundo?

Eu quero um abismo
Que seja só meu:
Será comodismo
Rejeitar o Céu?
Insiste! Persiste!
Prossegue! Porfia!
O ser que desiste
É besta sandia!

E num esforço insano
Cavei mais p'ra dentro,
Para além do humano,
P'r' além do tormento;
Até que por fim
Achei um vulcão
Que explodiu, enfim,
Numa exaltação;
A lava descia
Pela sua encosta
E eu nem me movia
Com a visão imposta;

«Que medo, que assombro!»
Pensei estarrecido,
Tremeram-me os ombros,
Perdi os sentidos;

Quando vim a mim
Já tinha morrido,
Lamentei o fim,
Chorei incontido;

Mas não cesso a busca,
Não esqueço a missão:´
O cansaço ofusca,
A vontade não;

Anseio, pesquiso,
Revolvo essa lava,
Mantém-se impreciso
O que antes buscava;

Penetro as entranhas
Do Monstro hediondo:
Fornalhas tamanhas
Com tamanho estrondo!

Que horror, que suplício!
O Inferno é isto?
«Caramba! Que vício!
Pareces o Cristo!

Porque dizes mal
Do que desconheces?
Isso é afinal
O cancro das preces:

Isto é violento,
É certo, mas belo.
Mas cá me apresento:
Satanás Campello.

Nasci mais além,
Mas habito aqui.
Dispensei o Bem
Porque não o vi.

Procuro um amigo,
Não sei se ele és tu.
Há anos que o sigo
No sonho mais cru:
Um homem alegre
Que aprecie a arte,
Com quem não me enerve,
De quem não me farte.

Que goste de um copo,
De jazz, de xadrez,
Que ame o barrôco,
E um whisky maltês;

Que evite contendas
Sobre o Universo,
Mas que ame e entenda
O esplendôr do verso:

Esse homem perfeito,
És tu, ò bandido?
Que peso no peito!
Que aperto sofrido!

Enfim, esquece tudo,
Estou talvez tocado...»
Enfim, fiquei mudo
E um pouco pasmado:

Que milagre é este
De encontrar o Mito?
O ícon da peste,
O Anjo Maldito?
Mas será possível
Que essa coisa horrenda
Tenha causa cível,
Prelecções de emenda?

«O senhor, - expliquei,
Meio encavacado, -
Está grosso, não sei,
Ou está enganado;

Não tenho o perfil
Daquilo que quer:
Ou estará senil
Ou será mulher!»

«Senil eu não sou!
Mulher também não!»
«Então abusou
Do seu garrafão;

Isto não está certo,
Nem sequer me agrada.
P'r'a estar neste aperto,
Volto a pôr-me à estrada;

Por onde se sai
Deste pocilgão?
Este vai não vai
É uma irritação!

Mas que labirinto!
Mas que porcaria!
Não sei o que sinto,
Mas tenho uma azia!»

Já vi, tristemente,
Que Céu e Inferno,
São, basicamente,
O mesmo antro enfermo;

O melhor, enfim,
Será vaguear,
Mandriar, assim,
Sem nada que achar:

É bom ser bandido,
Roubar a quem tem,
Seguir destemido,
Sem temer ninguém;

Fumar cigarrilhas,
Vaguear no escuro,
Tecer armadilhas
Ao próprio Futuro!

Já corri o Mundo,
Já vivi nas Estrelas,
É tudo infecundo,
Paisagem p'r'a telas;

Já estive com Deus,
Não sabe o que quer,
Já comi pitéus,
Provei o prazer;

E já fui ao Inferno,
Já vi Belzebu:
Escaldava o estafermo!,
Tratei-o por tu;
Bebemos um pouco,
Falámos de nós,
E vi que era um louco
Sentindo-se só;

Depois do que vi,
Depois do que achei,
Pensei que vivi,
Pensei que pensei;

Mas se penso e sou
São outras ideias
Que o tolo esgotou
Ardendo candeias;

Porquê pensar nisso
Se basta passar,
Sem ter compromisso,
Sem ter de parar?

Assim continuo
Bandido e ladrão
Rumo ao fim de tudo
Lá na Imensidão;
Cavalgo sem tréguas
O meu alazão,
Vou papando léguas,
Toando a canção:

Sou um pobre bandido
Sem eira nem beira
Não tenho um sentido
Nem talvez o queira;

Vagueio no escuro,
Preparo armadilhas,
Disseco o futuro
Numas cigarrilhas;

No vazio das ruas
Procuro emoções,
Vou de lua em lua
Atrás de ilusões:

Como esta de agora
De estar mesmo aqui:
Como vivo a hora
Se outrora eu morri?

E tu meu leitor,
Não serás como eu?
Um espectro de dor
Procurando o seu?[1]

Não busques, que é vão,
Vadia comigo!
Ao som da canção,
Do eterno bandido...

Lisboa, 12/03/2006

[1] Nota do Autor: Versão alternativa - Procurando o Céu.