Saturday, June 30, 2007

A Corôa

I

A coroa é um símbolo-objecto
Deposto na cabeça de um monarca.
O jugo é o púlpito-dejecto
Que nos impõem e nos deixa marcas.
O povo é o último-excesso
Da revolta que tarda e nos trespassa.

II

Segunda hipótese figurada da ruína
Marcada no verso da moeda;
Altura elevada da bebida
Em que se aposta a Vida que nos resta...

III

MacBeth foste Rei de Tanto e de tão Pouco
Perdeste a tua lei, ficaste louco,
Dentro de ti corria uma serpente:
Uma mulher, mesquinha e prepotente.

Lady Macbeth é a tua consciência,
A tua alma é toda a tua ciência,
Não há desculpa num gesto além de ti:
A tua culpa és tu e o horror em si.

As bruxas são vontades, não destinos,
Disseram-te só sonhos que tiveste,
O que fizeste foram teus desejos...

A côroa ensanguentada e os seus hinos,
São gritos dessa dôr e dessa peste
Que é governar sem dominar ensejos...

Lisboa, 06/01/99

Friday, June 29, 2007

Caras

Cada um de nós tem uma cara
Em que se esconde o medo que há em nós;
Cada um de nós tem uma máscara
Que vai mudando quando está a sós.

Lisboa, 06/01/98

Thursday, June 28, 2007

Confrontos

Não devias ter vindo.
Estava a tentar esquecer-te.
Na verdade já tinha conseguido conceber um naufrágio onde te afundavas
E lamentavelmente padecias sob a força das águas.
Naturalmente chorei-te:
Uma mulher tão bonita e tão nova! – Pensei com os restantes convivas – Que dor de [alma!
E chorámos todos.

Foi depois a vez do padre:
Sacrementou-te, latinizou-te, perdoou-te o imperdoável;
E a terra comeu-te.
Foi bonito…

Por volta das duas fomos beber e comer.
Os mais alegres contaram umas anedotas.
Os mais tristes riram-se.
A tarde passava agradavelmente.
O sol brilhava.
Um ou outro corvo pousava sobre as campas,
Saltitando,
Rebicando,
Esvoaçando.

Um ou outro fato preto punha flores na terra que te cobria.
Sentiu-se paz. Dormi. Foi um bom dia.

Mas hoje reapareces como um fantasma para recuperar os movéis que nem são bem teus,
E para rasgar o retrato em que sorrimos juntos,
E para exigir a tua presença material onde ela não pode existir.
Chegaste mesmo a falar.
Chegaste mesmo a proferir palavras com uma voz metálica e um desdém nos lábios.

Não me lembro exactamente como foi.
Eu tinha acabado de acordar, alucinava…
Balbuciei «Amo-te»
Suplicante, patético, infeliz.

Olhas-te-me de lado, de forma glaciar.
Sibiláste: «Vai para o Diabo!»

Estive mesmo para responder:

«A sério!, eu tentei!,
Mas ele não me quiz…»

Achei porém que te ririas de mim.
Por isso calei-me.
Tu, por tua vez, tiraste o que querias e foste embora sem me dizer mais palavra.

Foi então que me ri de mim próprio.

Bruxelas, 13/05/04

Wednesday, June 27, 2007

Imitação De Cristo - (À Saudosa Memória De Tomás de Kempis)

Aqui,
Acorrentado
Ao muro de silêncio,
Jazo
Com o pus a escorrer-me das chagas abertas.
Eu vi o chicote desses fariseus
A vergastar-me a fome,
A doer-me as costas descobertas;
Eu vi o cheiro do dinheiro
A tilintar nas suas mãos ínfames
Quando me rasgavam a pele e a fronte,
Quando me venderam
E, depois,
Quando enforcaram o arrependimento na árvore mais próxima;
Eu vi-lhes o medo que me tinham
De lhes vir a ocupar o seu lugar;
Eu vi-lhes a sentença;
Sorvi-lhes a doença na retina,
E senti-lhes o ódio no olhar;
E vejo ao longe o monte (a despontar)
Esquecido totalmente pela luz.
Suspiro.
Sinto o cheiro da morte. –
De sorte que já vejo ao longe aproximar-se
Aquele que me vai passar a cruz...

Lisboa, 14-06-98

Tuesday, June 26, 2007

Sonho Filosofal…

Nesta mesa onde me sento,
Onde repouso e descanso,
Neste pensar que é tão denso
E ao mesmo tempo tão manso,

Eu julgo ter percebido
Que nada sei sobre mim:
Sou um mistério insurgido
De um fogo ingente e carmim.

Quero mais e mais me falta
A cada querer que eu anseio.
A minha fome vai alta,
O meu prazer vai a meio...

Quero ir além de tudo
O que existir p'ra passar:
Além do céu negro e mudo,
Da superfície lunar.

Mas se além chego outra mágoa
Vem constrangir-me sem dó:
Insaciado na água,
Acompanhado e tão só!

Do outro lado de tudo
É tudo tal como aqui:
Tal como o céu, negro e mudo,
E tão ausente de si!

Evoluir é um abismo,
Não vejo bem no Progresso;
Tudo me surge num ismo,
Tudo me sabe a Regresso...

Volto atrás sem perspectivas
Nas perspectivas de mim...
Ando às voltas, à deriva,
Circulo em torno do fim...

Ser ou não ser este homem,
Com corpo e mente e razão.
Cinco sentidos que dormem
Sobre um fugaz coração...

Chegado o dia do termo,
O que fiz eu que me importe?
Sou um lugar sêco e ermo,
Deserto vago de Morte!

Passam por mim caravanas
Sobre os meus sonhos reais;
Mudam-se areias e ganas,
Mudam-se os tempos sid'rais...

Elas vão além da linha
Do Horizonte sombrio;
Vão vender isso que eu tinha
Antes de ser tão vazio:

A minha alma corrupta
Por tanto desejo vil;
A minha fé resoluta,
O meu céptico perfil.

Vão vender na feira laica
Os perfumes do além;
Rezas negras da Jamaica,
Ritos do Mal e do Bem;

Vão vender a Aventura,
O Amor e a Saudade;
Vão promover a Ventura,
Pôr na praça a Liberdade;

São os vendilhões do templo
(E esse templo sou eu)
Dão o pregão - um exemplo:
«A cinco tostões o Céu!»

As gentes, ávidas, correm
E acorrem à chamada;
As gentes ávidas dormem...
Vão a tudo, vêm nada...

E é assim com a vida
Que sem notar experimentamos:
A cada gesto uma ida -
É um cais que abandonamos;

Damos por nós, certo dia,
E já corremos um mar…
Mas onde fomos? Sabia
Muito melhor bolinar!

Que o vento então decidisse
O port' aonde acostar;
Que Deus então me surgisse,
Me desse forma e lugar!

Toma, ò Génio, esta costela:
Eu tenho andado tão só!
Eva perdeu-se à janela
Do sonho que se fez pó…

Dá-me outra deusa que tenha
O mesmo virus mortal:
Uma fome vil e estranha
Pelo espaço Universal!

Alguém que veja na vida
Mais que um ponto de passagem;
Que se prefira engolida
Pela boca da voragem!

Que queira tudo, além-tudo,
Que veja ter tudo em mim:
Mesmo send'eu negro e mudo,
Mesmo send' eu isto: assim...

A permanência inconstante,
Ou a excepção trivial:
Nada nos serve o bastante;
Tudo é dif'rente e igual...

Muda-se tanto e tão pouco,
Somos de tudo e de nada;
Somos o sábio e o louco,
A vida bruta e parada.

Somos esta carne sêca
Entre a areia do Deserto,
Carcassa errante que peca
Sob as estrelas do Incerto;

Somos isto que quisermos
Sem valor além de letras;
Espectros que remam, enfermos,
Por rias frias e pretas;

Viajamos sobre o Letes,
O Letes viaja em nós:
Soterrada, entre ciprestes
Deixámos a nossa voz.

Para quê cantar mais tempo
Se também deixou Orfeu
A lira, por um lamento,
Soterrada sob o céu?

E seguimos sob o monte,
Rio abaixo navegamos:
Dar a grinalda a Caronte,
Pagar o óbolo vamos...

Cérbero já se vislumbra,
Além, ao fundo do rio;
Cérebro, pára!, é a tumba!
Já falta pouco... Que frio!

Vou na barca do Inferno
E ninguém me viu passar;
Sigo em frente sem governo
E já não penso em parar.

Pedi a Deus uma deusa,
E vejo Lídia na margem;
Lídia é de Reis! A mim, Neusa!
Amar-te-ei de passagem...

Bato à Porta do Tormento,
Peç' ao Diabo p'r'entrar;
E vem-me abrir, sonolento,
Um demónio feito d' ar;

Digo a senha, faço figas,
Diz-me que sim e que não;
Mostra-me sete barrigas,
Tem sete pés, sete mãos.

E por sete bocas feias
Fala do fundo do assmobro:
«As sete covas estão cheias!
Olhe por trás do meu ombro!

Vá bater a outra porta:
O Inferno está lotado!»
Continuei - E que importa?!
Hei-d' ancorar noutro lado!

Para um morto - e eu estou morto!,
Nem burros à andaluza,
Nem canapés (nem um porto!),
Nem cetins, nem uma blusa

Trazem conforto eficaz.
Não faz diferença, não cansa -
É mal ou bem? Tanto faz...
Mais à frente há outra dança!

E rio abaixo e acima,
Nos pesadelos de mim,
Eu passo Baía e Lima,
Paris, Lisboa e Pequim!

Atravesso todo o globo
No meu sonho glaciar:
Na Morte forjo-me um lobo -
Um velho lobo do mar...

Moby Dick, já estou perto!
Meu inimigo mortal!
Meu vão delírio desperto,
Minha ilusão capital!

Um de nós há-de acabar
No grande eclipse final!
Um de nós há-de gritar:
«O que fui eu afinal?!»

Ser ou não ser o agente
Nesta mesa em que me sento,
Deste pedaço de gente,
Sonho que pensa tão denso;

Neste lugar de pesquisa,
Onde repouso e descanso,
Onde me sopra uma brisa,
E me afaga um vento manso,

Eu julgo ter percebido
Que nada sei sobre mim:
Sou um mistério insurgido
De um fogo ingente e carmim…

E nada do que me crie
Ou do que me queira crer
Fará com que contrarie
A minha forma de ser:

Este mistério insolúvel
Este tremendo vulcão;
Est'astro breve e volúvel,
Asteróide em colisão;

Este foguetão pousando
Na superfície lunar;
Este adagio triste e brando
Ou este enorme rufar!

Este coração com vida
Que anseia, pula e que dança!
Esta «bola colorida
Entre as mãos de uma criança!»

Eu sou de tudo e de nada,
Tudo o que vês está em mim:
Se não há mais, rompo a estrada:
Neófito, não há Fim!

Lisboa, (Sapadores), 26 de Junho de 2007.

Monday, June 25, 2007

Desajustes

I

Quiz ser o que não sou;
O que eu não sei, o que não posso ser.
Vivi-me, simulei-me um outro:

Um estranho a mim que em mim se sedentou,
Forçando algo, aí, a perecer…
Mas onde está o dono do meu corpo?

Lisboa, 27/04/97

II

ESBOÇO DE UM EPITÁFIO:

Aqui jaz a alma que eu não tinha
A impressão de um ser independente.
A consciência que tenho não é minha:
Morreu o que eu era realmente…

Bruxelles, 28/08/04

III

Estou morto por dentro.
Como uma noz que só tem de bom a casca.
O meu Poder Estatal tem no seu centro
Um terrorista em prol da causa basca.

Por isso tenho o espírito em estilhaços.
Por isso provo tanta solidão.
Dás-me o teu coração, abres-me os braços,
Mas não consegues cobrir a multidão

De eus e pessoas que eu possuo.
Tenho uma sombra que me está pregada
Que me corrói com o gesto mais ruim,
Que me extermina pelas horas más:

Bombas me lança do seu antro escuro,
Arde-me os dias, faz-me cinza e nada,
Por mais que o povo imenso que há em mim
Se junte e em coro clame pela paz…

Lisboa, 06/03/01

Sunday, June 24, 2007

Do Juízo Final

I

… E há-de vir o Cristo
Para o Julgamento
É aquilo ou isto
O que eu sou por dentro?

Vejo um monstro negro
Vejo um anjo branco;
Será um bruxedo
Ou apenas espanto?

Anjos e demónios
E uma assembleia.
O público espera
Alguém da plateia.

Quem falta chegar
Dessa gente ilustre?
O Papa está cá:
Mas era um embuste…

Ninguém da Igreja
A falar p’lo povo?!
Pode ser que eu veja
Um cardeal novo!

Mas ah! Eis que estão
Os bispos e os padres!
Mas oh! Um grilhão
Os prende a uma trave?!

Pobre gente nobre
Que se vê cativa!
Depois dos trabalhos
Que lhes deu a vida!

Todos os mortais
Estão aqui presentes –
Mas dos imortais
Há alguém ausente!

Oh! Supremo Engano!
Ò Deus Criador!
Faltarás neste ano
À festa maior?

Este é o Carnaval
Porque tu esperavas!
É este o arraial
Que tanto ansiavas!

Veste então o fato
De Rei dos truões
E junta-te a nós
Nas Celebrações!

É como, o teu jogo,
Da Justiça Eterna?
– «Este para a suite
Esse p’r’á cisterna!? –

Tu verás o sol,
Tu o calabouço;
Tu saltas à corda,
Tu tem-la ao pescoço;

P’ra ti o calor
D’álegria imensa,
Para ti a dor
De uma chama intensa;

Tu serás feliz
Porque estás comigo;
Tu serás um rico,
E tu um mendigo.

Para ti fartura,
Para ti a fome,
P’ra ti a amargura
De ouvires o meu nome».

Mais eis que me surge
Uma mão por tráz:
«És tu, ò barbudo!
Pois então por cá?!»

«Pois não perderia
Tamanha festança!
Já não dormiria
Com tamanha errança!

Queres então saber
Das coisas que faço?
E o que vem a ser
O plano que traço?

E como tómo eu
Estas decisões?
Ora, é segredo,
São as convenções…

Assunto de Estado –
Não vou revelar…
Mas vá, tu insistes,
Sou bom, vou contar:

Eu tenho aqui dados
Dentro do meu bolso
A que dou valores
P’ra este e p’ró outro;

Consoante calha
Traço o seu destino –
E se algo falha?
Foi um deus Maligno!

P’ra isso o Demónio
Dá bastante jeito –
Era um pandemónio
Sem esse sujeito!

Por vezes altero
Este meu sistema
Se acaso me surge,
Assim, uma piquena,

Com pernita cheia
E bem torneada,
Ou um jovem loiro
De tez bronzeada…

Que posso eu fazer?!
São as tentações!
E em casos destes
Há negociações

Com o meu colega
Do andar de baixo:
Também ele os pega!
É um berbicaxo!

‘Inda pode haver
Outra circunstância
Em que uns certos herren
Com muita jactância

Nos fazem propostas
Tão irresistíveis
Que os deixamos ir
P’ra onde pedirem:

Oferecem-nos vinho,
Licores, iguarias:
Um ou dois meninos,
E fotografias…

Por vezes nós vamos
Para as Tulherias,
Onde já formámos
Uma Confraria;

É o Paraíso
Como podes ver;
Se tiveres tal passe
Podes lá viver!

Mas no fundo o Inferno
Não é tão diferente:
Só faz mais calor
E tem lá mais gente;

E há menos luz –
Mas lá te habituas…
E também seduz:
Belas jovens nuas,

Altivos mangalhos,
Soberbas orgias…
Não só de trabalho
Se fazem os dias!»

«E até quando a Vida
Na tua Injustiça?
Até quando escravos
Da tua preguiça?»

«Até querer o Homem
Na sua aflição,
Pois apenas vivo
Na Imaginação».

Bruxelas, 30/05/04

II

E há-de vir o Cristo
Com uma balança
Pesar as obras,
Medir os Homens;
Essa Hora é um misto
De desesperança
Que se alastra noutras
Que depressa somem…

Bruxelas, 30/05/04

III

«Julgar os Homens!,
Abrir os Tribunais!,
Deixar entrar a Nave dos Dementes!»

§

«…Eu te condeno e aos mosntros que te comem
A cultivar a dor nestes quintais
Que hão-de produzir eternamente…»

Bruxelas, 30/05/04

IV

Depois dos Tribunais
É o medo
E o grito
Da revolta.

Depois dos Tribunais
Vem a angústia
De assistir à verdade assassinada.

Depois dos Tribunais
Volta o choro de lágrimas e sangue
Rotina de uma infância violada.

Depois dos Tribunais
Vem a cegueira
De ter visto a deturpação dos factos
Constante
Repetida
Perdoada.

Depois dos Tribunais
Vem o carrasco
Do Homem
E da balança viciada.

Depois dos Tribunais
Somos nós
Sem sermos
Porque nos tiraram tudo
E o sono
E a esperança
E a pele espancada
E os sinais.

Depois dos Tribunais
É a vingança
Afiada no gume dos punhais.

Depois dos Tribunais
É a lembrança
Asfixiada para nunca mais!

Lisboa, 05-06-98

Oh!. Quem tanto pudera, que fartasse
Este meu duro génio de vinganças!

Lisboa, algures no séc. XVI, Luís Vaz de Camões

V

Arder!,
Arder!,
Que há já tardança!
Bruxelas, 30/05/04

Intensidades

«Porque ficou oceânico o escasso
Momento de nós?»[1]

Toda a nossa História: Sermos sós...

Que podes querer da vida em movimento?
Cada minuto uma fracção do que nos resta...

Somos o palco, o drama e o elenco...
Escrevemos nós a peça!

Haja festa pela noite dentro!
Haja festa! Haja festa!

Tragam os copos!
Queimem o incenso!
Vamos arder as horas mais funestas!

Ouves dançar ao fundo?
E o silêncio...
Ouves cantar ao fundo?
E a tempesta...

O mar subiu à terra,
A dôr ao coração...
Estou em guerra com a guerra
Da emoção...

Vivo em constante mutação...
Vamos viver a vida como vivem
Os brutos condenados!
Vamos viver a vida como vivem
Os loucos no hospício!
Vamos viver a vida como vivem
Os homens em delírio!
Vamos viver a vida como vivem
As extáticas bacantes!
Vamos viver simplesmente,
Avante! Avante!
É viver antes
Qu'isso da vida passe e que pereça!
Avante!, Avante!
Vamos! Antes
Que esta vontade intensa desvaneça!.

Lisboa, 26-05-98

[1] Que o sentido oculto desta difícil pergunta se procure em Luísa Neto-Jorge. Que na busca o leitor não conserve esperanças. Nesta má poetisa (em que este verso é, aliàs, dos melhores pela sua estimulante sonoridade) não deve, na verdade, procurar-se um sentido, mas apenas sentir-se e brincar com um fácil jogo de sons, fingindo a descoberta do mundo como, por norma, o fazem as crianças…

P.S.1: Eis as minhas gentis interpretações: a) Porque se dissolveu (em água) o escasso momento de nós? – isto é, da nossa existência… b) Porque se alastrou até à indefinição (profunda e misteriosa como o Oceano), a nossa escassa circunstância de ser? Aguardo apenas que a Madama Neto-Jorge se digne (se necessário da tumba) a vir agradecer-me os estoicismos: a) De ler a sua poesia; b) De, à la Madre Teresa de Calcutá (que alguém a tenha!) ou São Francisco de Assis (o do quadro de Bellini, por exemplo!), b1) A melhorar b2) A partilhar com a restante comunidade de fieis.
P.S.2: Aceito contribuição/ donativos para a minha conta bancária e/ ou estátua pedestre em praça pública.
P.S.3: Pela arrogância petulante e intolerável demonstrada nesta nota de rodapé, estou já há 35 dias em jejum, a pão e água e ainda sob um pesado sermão epsicopal de hora e meia com subsquente penitência de 700 Pais Nossos e 930 Avé-Marias. A indulgência obrigou-me igualmente a uma coima de 50 contos (o correspondente, nestes dias de progresso da ilusão europeia, a 250 euros). De facto é custoso o caminho do céu…

Friday, June 22, 2007

Intimidades

E chego enfim ao teu Jardim Suspenso;
Vislumbro-te estendida sobre as flores.
Falamos de segredos empilhados,
De sonhos e desejos arrancados
À Ilha dos Amores...

São estes silêncios penetrantes
Soando repentinos no ouvido
Que me dão esta fome altissonante
De falar contigo...

Juraste ler nas linhas que há na terra
A Face Universal da Poesia.
Disseste conhecer um tal feitiço
Que acaba com a dor e com o enguiço
Como que por Magia...

São estes silêncios inocentes
Soando repentinos no ouvido
Que me dão a vontade inconsciente
De estar contigo.

Entornámos, nervosos, as palavras
Sobre toalhas tímidas, coradas;
Tricotámos os dedos que tremiam,
Entrelaçámos braços que fremiam,
Cantámos cem baladas...

São estes silêncios fabricados
Soando repentinos no ouvido,
Que me dão o desejo incontrolado
De dormir contigo.

Quiseste então sondar-me o coração.
Falaste-me de Deus e das marés –
Beijaste-me no rosto envergonhado,
Saraste-me essas chagas do Passado,
Deitáste-te a meus pés...

São estes silêncios estonteantes
Soando repentinos no ouvido
Que me dão o desígnio hilariante
De morrer contigo...

Lisboa, 26-05-98

Thursday, June 21, 2007

Causalidades

Porque preferiste ignorar que respiras e adormecer,
Porque também desprezas ser um entre iguais e o próprio ser,
Porque tu te julgas ser injustiçado neste Julgamento,
Porque queres pôr à prova o inteiro Sistema e o que tem dentro,

Porque tu te vês num Império de armas, numa enorme cruz,
Porque desse Mundo que o Demo te mostra nada te seduz,
Porque tu já sofreste e já viste o sangue e sentiste a dor,
Porque foi o teu, o braço do mito, que abateu Heitor,

Porque a Vida é curta mas o Sonho é longo e é a Treva imensa,
Porque ainda há luta e alguém que chora de uma angústia intensa,
Porque é tudo triste e tudo consiste no seres Moribundo,

Vais escolher ser nada onde nada existe nem como conceito,
Vais ser como estrada com princípio e fim no teu próprio peito,
Vais ser o Messias que a Fé te negava, desprezando o Mundo…

Bruxelas, 10/05/04

Wednesday, June 20, 2007

Casualidades - (Incitação à união dos corpos)

Como tudo na vida, há um copo
Nas horas de crise, nos cafés.
Como tudo na vida, há um morto
A flutuar na baixa das marés.
Como tudo na vida, há um sopro,
Suspiro final do que se vê:

Quando se apagar a chama nesta vela
Quando tomarmos essa caravela
Rumo ao desconhecido
Estaremos longe…
Que seja unidos!

Como tudo na vida, há um barco
Que se afunda na ponta de um coral.
Como tudo na vida, há um charco
Que ensombra os sonhos na sua espiral.
Como tudo na vida, há um parco
Corredor, fantástico e fatal:

Quando se apagar a chama nesta vela
Quando galoparmos nessa sela
Rumo ao desconhecido
Estaremos longe…
Que seja unidos!

Como tudo na vida, há um teatro
Que se vive e se dorme e se sente.
Como tudo na vida, há um retrato
Passado angustiante que nos prende.
Como tudo na vida, há um abraço
Que nos envolve o corpo inconsciente:

Quando se apagar a chama nesta vela
Quando subir banal àquela estrela
Rumo ao desconhecido
Estarei longe...
Fosse contigo!

Lisboa, 25-05-98

Tuesday, June 19, 2007

Exortação

Abre a porta, sai, vai ver a rua!
Não fiques sempre aí trancado!
Não é tão negro, o Mundo, já não dura
A chuva que caía ‘inda há bocado!

Tem coragem, sossega, enfrenta o Sol! –
Sente o vento soprar-te nos cabelos:
Abre os teus braços como um girassol,
Abre a mente, cria novos elos…

Abre a janela! Força! Vê por ela
A vida que esqueceste lá por fora!
Não dês tant' importância a essa dôr!

Mas logo um espirro… Vá, fecha a janela…
A diversão? O gozo? Sim, ignora…
Chega mais p’ra cima o cobertor…

Lisboa, 30/04/00

Monday, June 18, 2007

Sobressalto

I

Passos...
Ouço passos, lá fora, ò Solidão!
Corro a ver de quem são,
Quem chega - Não me viu, não o vi…

Nada...
Nada, nem ninguém...
Só passos rápidos de alguém
Que não vem por aqui...

Tenho a vida presa (que prisão!)
Desde que nasci...
Tenho uma ansiedade, inquietação...
Mas já passou, já esqueci...

Lisboa, 22/11/95

II

Sim, descansa...
Foi só um sobressalto.
Podes voltar a essa enorme angústia
Que define a tua natureza...

Pois quem virá comer à tua mesa?
Só esta hidra que voa dos planaltos,[1]
Só este monstro do medo e da incerteza…

A Solidão?
Que vileza!
A Solidão?
Que vileza!

Podes voltar a essa enorme angústia
Que define a tua natureza...

A Solidão?
Que vileza...

Lausanne, 22/09/04

[1] Nota do Crítico: Nova incongruência deste autor menor. Como é do conhecimento geral, as hidras não voam. Cf. National Geographic, programa XII, série 237, 19xx.

Na Hora Do Adeus - (Ou um Poema Fotográfico I)

Como fui insensato em quebrar-te o riso !...
Mas, como poderia adivinhar?!...
Como é triste ver-te deprimida!
Chega querida! Pára de chorar…

Lisboa, 29-05-96

Tonturas

A tua saia
Redonda
Desmaia
Nas ondas
Maleáveis
Das marés.

O meu corpo
Inerte
Sem forças
Perece
Em frente
A teus pés.

O teu rosto
Escarnece
Do meu
Que apodrece
E se esquece
Que é.

Pudera
Eu ser grande,
Tal como
Um gigante
Domina
As alturas!

Mas, enfim,
Sou triste!
No ser mau
Consiste
A minha
Figura!

E por isso
Jazo
Sob o teu
Vestido
Que me dá
Tonturas…

Lisboa, 20-05-98

Sunday, June 17, 2007

Na Sombra

I

A força das marés arrasa os portos–
Destroços são a marca inquestionável.
A força das marés desfaz colossos –
A areia é a matéria irrefutável.
A força das marés revolve os corpos –
O sangue é uma prova insofismável.

II

A

Estar sozinho
Abraçado
Com o silêncio;

B

Conhecer
O suplício
De ser múltiplo;

C

Conviver
Com o lento
Movimento

D

Da vida
Que me abriga
No seu túmulo.

III

Vivo no abismo
Entre a terra e a onda,
Meu Negro Ostracismo
É seguir na Sombra…

IV

Então Deus criou a Terra
(Que me encerra)
E os Monstros
(São os outros!)
E os Quatro Elementos
(A Fúria, a Fome, a Sede e o Tormento)
E os pecados, que são três
(Sonho, Poente e Eternidade),
E inventou essa vil dualidade
De ser de uma só vez
Abel, Caim…

Nós descobrimos,
Ainda que a despeito da vontade,

Que não choramos apenas, também rimos[1],
Que não foi do mesmo ventre que provimos[2],
Que, por certo, a vida tem um fim[3].

Lisboa, 11-05-98

Notas do Autor: [1] O Ridículo
[2] A Imperfeição
[3] O Desespero

Friday, June 15, 2007

Gabriel Cravo e Canela

I

Tão só estirado com os sonhos no Poente,
Tão só galgando esta ponte de medo,
Remando rumo ao Cabo,
Cruzando e enfrentando monstros mudos,
Com os olhos postos no Capitão do Fim...

Tão só na rota do ouro do Oriente,
Nesta São Gabriel dos Portugueses.
No mar acobardado,
Deus conduz pela própria mão estes marujos
Que buscam Fama e Glória em Bombaím...

II


No Oriente do Oriente do Oriente,
Eu busquei Fama e Glória, insanamente,
Amei sobre lençóis de bom cetim,
Fumei o ópio, a planta transcendente,
Comi desses manjares de mandarim,
Provei todo o prazer inconsequente,
Vesti um manto branco, à Serafim,
Planei a ombros sobre a pobre gente,
Impûs a minha Lei suja e ruim,
Ganhei, pilhei, matei, impunemente,
Ladrei, rosnei, ferrei como um mastim,
E um dia dei por mim, tragicamente,
A entender que não dava por mim...

III

Fui conquistar o Mar do Oriente,
Goa, Calcutá, Omã, Cochim,
E vi-me escravo um dia desse intento,
E naufraguei no mar que havia em mim...

IV

Eu Portugal (eu, Miguel!),
Eu fui em S. Gabriel,
Eu fui em S. Rafael,
Eu fui no Berrio além-mar.

Eu fui e vim sem me ver
Fui procurar e querer,
Fui encontrar e perder,
Fui quebrar ventos e ar.

E depois de ter partido,
E depois de ter voltado,
Dei por mim roto, exaurido,
Pobre, fraco, acobardado,

Dei por mim na Solidão,
Sem sentido e sem razão,
Sem ouro, barca ou padrão,
A chorar o meu Passado;

E vou boiando, abatido,
No paúl adormecido,
No charco mudo e esquecido
Do meu país estagnado...

Ontem fui Rei Sem Juízo,
Hoje sou Bôbo com Guizo,
Peito farto, bolso liso,
E c'o miolo parado...

«Tenho pena, tenho pena,
Mas não tenho melhor Fado!»[1]

Lisboa, 15/09/98

[1] Nota do Autor: Cf. «Surrealismo Por Correspondência».

Thursday, June 14, 2007

Estoicismos - (Imitando Sócrates)

Novo acesso de tédio –
É uma constante.
Desisto.
E desta vez é a sério.
Tenho medo.
Mas o medo
Permuta-se.
Abro-me e transformo-me em cicuta:
Beberei o veneno do meu próprio sangue...

Lisboa, 02-04-98

Wednesday, June 13, 2007

Cara-Metade

I

Ganho-me,
Perco-me,
Transformo-me,
Procuro-me inconstante nas experiências
Que ensaio,
Provo e desvario;
Um medo que não temo;
Um calafrio;
Procuro um jogo,
Um coito,
Um parceiro com quero brincar às escondidas.

Escondo-me.
Perco-me.
Encontro-me. – (Mas serei eu?) –
Sinto que me falta sempre qualquer parte...

Sei que faltas tu
Que eu imagino –
Meu outro ser
Meu outro eu
Minha outra vida,
Minha especial cara-metade…

Lisboa, 16-03-98

II

São horas de escuro; há um pouco de trágico –
Que pesar!
Sinto-me (tanto!) em baixo e abatido.
Preciso urgentemente de encontrar
O clássico tu mágico
A quem se possa dizer:
« Quero estar contigo
Para sempre, quem sabe,
Se durarmos sempre
Se existir um sempre
No teu dicionário
Para me aturares
E eu te aturar
E nos vivermos um ao outro como somos
Sem nos querermos mudar.
Eu amaria o teu sorriso viciado
E tu amarias os meus versos programados
Para mudar o Mundo.
Não precisavas de chorar quando eu estivesse triste
E eu não precisava de rir quando tu risses,
E assim,
Aos poucos,
Completar-nos-íamos
Em tudo:
Tu gostarias de mim
Por eu ser louco,
E eu rir-me-ia de ti, com gosto,
Sempre que previsses o futuro...».

Lisboa, 21-09-97

III

Voltaram as Cruzadas.
Não procuramos o Graal.
Buscamos apenas o que falta de nós.
Queremos a coroa
Da nossa cara,
O outro lado
Da nossa voz.
E juramos aqui, sobre esta espada,
Que seremos capazes de tudo:
Desceremos aos Infernos se mandarem,
Iremos até ao fim do Mundo!

Lisboa, 28-03-98

IV

Surgiste quando eu já não esperava.
Quando até já negara que viesses.
Não julguei nunca que saísses do sonho.
Não te pensei possível e afinal….

Sou um vulcão (repara) e isto é lava.
O que não existe ouviu as minhas preces.
O que nada pode pôs-te onde me ponho.
O que é só Ideia tornou-te real.

Lisboa, 20/03/02

V

O meu amor fechou-se subtil como as palavras –
O meu amor é daqueles que nunca revela o seu mundo.
Espera amor! – Fecharemos juntos este livro imundo;
Folhearemos, rasgaremos juntos estas páginas!

O meu amor! Fechou-se subtil como as palavras!
Guardou-se a sós na terra que nos espanta!
Espera amor! Fecharemos juntos esta campa!
Choraremos juntos estas mágoas!

O meu amor fechou-se subtil. Como as palavras
Encarcerou-se nesses manuscritos,
Contos apócrifos de parcas existências.

O meu amor fechou-se. Subtil como as palavras
Bebeu-se em sangue lúbrico dos ritos;
Espera amor! Parimos juntos a sobrevivência!

Lisboa, 16-03-98

VI

Senti que me faltavas.
Esperei-te.
Procurei-te.
Encontrei-te
E vivemos

Cavámos esta cova
Juntos
E morremos.

Enterrámo-nos no chão
Que descobrimos,
E sorrimos.

Podem vir ver-nos
E desenterrar-nos. –

Encontrar-nos-ão
A apodrecer unidos...

Lisboa, 28-03-98

Tuesday, June 12, 2007

Tu e Goethe - ( Trabalho Poético)[1]

I

Coloquei a minha casa sobre o nada;
É por isso que o Mundo inteiro é meu...

Goëthe

II

Morreste
E ficaste sem morada.
Foi por isso que Deus criou o céu.

Lisboa, 30/03/98

[1] Nota do Autor: De facto, o poema cansou-me. Carlos de Oliveira sentiu o mesmo cansaço. Os poetas modernos, mais inteligentes, evitam-no; e assim permanecem modernos. Felicitações, oh!, grandes visionários!

P.S. do Autor: Há uma segunda hipótese. Os poetas modernos trabalham demais. Nesse caso, que enorme cansaço! Até de si próprios! Por favor! Descansem!

Monday, June 11, 2007

Poema de Convicção

O Homem:

È noite escura e nada aqui faz sentido;
Estou à espera de alguém.
Dentro de mim ouço um grito incontido –
Mas dentro de mim não existe ninguém.

Nem onde estou, nem à minha beira;
Nem nos meus sonhos ou no meu pensamento;
O que sinto de mim é como uma esteira,
Já velha e gasta, sobre frio cimento...

A Mulher:

É dia alto e nada aqui se explica;
Há alguém que não chega.
Estou há anos sentada sobre esta barrica
E só o tédio aconchega.

Nem um doce sonho ou feliz pensamento;
Nem um formoso Lord de algibeira;
O que sinto é tanto que quase rebento
Mas sinto-o sempre da mesma maneira.

II

O Homem:

Já vai longa a espera e ainda estou comigo;
Não existe a Paz.
Mesmo assim há estrada e por isso sigo –
Já tanto me faz.

Talvez ainda encontre uma outra alma
Que se ajuste à minha.
Enquanto isso o Destino palma
A vida que tinha.

A Mulher:

Estou a sós comigo já há muito tempo –
A Paz não existe.
Porque sou Humana jamais me contento
E sou sempre triste.

Mas irei em frente pela estrada fora
Até ao Abismo.
Porque há outro Tempo para lá da Hora
E é nesse que cismo.

O Homem:

Porque há outro Tempo depois do que vivo
Viverei Além;
Nâo me importa a dor com que (hélas!) convivo
Não m’ela contém.

Nessa Terra vasta que não tem limites
Cavarei um prado.
E saciarei esses apetites
Que roubou o Fado.

A Mulher:

Oh Deus tu nos deste o mais negro fardo:
Ser mulher e mãe.
Mas há uma força que cá dentro guardo:
Viverei Além.

Nesse Mundo enorme que não tem tamanho
Porei uma flor.
E há-de ser meu esse Mundo estranho
Por ter o Amor.

Lisboa, 13/03/02

Sunday, June 10, 2007

A Origem da Tragédia

I

Deus quer, a mulher sonha, o Homem nasce.
Depois lavam as mãos dessa vergonha,
Adormecem neutrais como Pilatos...

II

A tragédia nasceu com a invenção do espelho.
Eu, Ballester, é claro, não sou eu;
Apenas o terror a que assemelho...

III

Dionísio inventou o frenesim das uvas,
Deu-nos a beber esse licor,
Para esquecer o fustigar das chuvas,
O vergastar da dor...

Mas não esquecemos, mágico, o horror!

Saturday, June 9, 2007

Surrealismo por Correspondência

I

Georgette é a filha da vizinha
Do prédio em frente, no terceiro andar;
Por norma está no quarto ou na cozinha,
(Locais onde a mulher costuma estar);

É bonita; sempre penteada;
Não tem irmãos, nem cão, nem namorado;
Discute muitas vezes com a criada
Sobre a Política Interna do Guisado.

Fala muito; especialmente ao telefone.
(Talvez por ele busque um sobrenome…)
Gosta de gatos, planta girassóis.

É arrogante; tola, impertigada.
Costuma passear sempre alheada,
E pensar muito com os seus caracóis…

Lisboa, 25/05/97 – Lausanne, 03/09/04.

II

Georgette tem de permanentemente fazer permanente
Para poder continuar inteligente.

III

Mas eu amo Georgette.
E não me envergonho de amá-la.

Eu grito: Eu amo Georgette!
O meu grito: Eu amo Georgette!
Meu grito: Eu amo Georgette!
Magrito (como sou), amo Georgette.
Também ama Georgette?
Mas grite: Amo Georgette!
Magritte ama Georgette.
Georgette ama Magritte?
Georgette não ama Magritte.
Georgette não ama ninnguém.
Georgette não ama.
Ninguém ama ninguém.
Ninguém ama.
Nem mesmo Magritte amou.
Magritte pintou:

Le Mal du Pays.
Le Mal du Plat Pays.
Le Mal de la Belgique.
Le Mal:
La Belgique.

Magritte pintou o Inferno.

Que tem isso com amor?

Georgette…

IV

Georgette,
Georgette,
Georgette,

Três vezes o teu nome se repete
Pelas três ocasiões em que te vi.

Cansaço enorme de gostar de ti!

V

Omelete, Gay da Dinamarca,
Desenhou com sua espada a marca
Com que me defini.

Era um Z de Zorro e de Zapata.
O Z tocou-me.
O Gay gritou-lhe: – «Mata!». –
O aço rasgou-me a vil carcaça
E eu morri…

VI

Amar,
A mar,
A Marte.

Três zonas por que a mágoa se reparte…

VII

Estavas num terceiro andar a penteares-te;
Estavas num carreiro a andar, depois tombaste;
Estavas a dar, depois nunca mais daste;
Estavas-te a dar, mas logo t’acabaste.

VIII

– O que é tacabar?
– Do latim taco, tacas, tacare, tacaui, tacatum est;
Significa um pouco este delírio que alastra como a peste.

IX

– Como suportá-lo?
– Estar imóvel.
Ser como uma estaca.

Ser um móvel,
Ser objecto.
Ser estátua.

Admirem-me!
Venham ver-me!
Sou uma Obra de Arte!
Contemplem-me!
Contemplem-me!
Contemplem-me!

Olhem-me sempre:
Quero morrer com um enfarte de gente,
Quero morrer com um enfarte de gente,
Quero morrer com um enfarte de gente,
Quero morrer com um enfarte…

Se não doer,
Se não doer…

Se doer quero esquecer
Que já o tive ou senti.
Se doer prefiro ver
Que ele se dá em ti…

Tornei-me assim altruísta
Depois que te conheci…

X

D. Afonso V, O Africano,
Depois de pelejar por muitos anos,
(Como um leão),
Conquista:

Damasco,
Tangerina,
Bananos
E Feijão.

Depois foi plantar tudo
A uma herdade em Azeitão…

Sacrista!

XI

Onde enterrou ele o ouro da nação?

(Falo do miolo…)

XII

Não procuro que me gasto, mas aguardo uma visão…

(Fotografo a Solidão,
procuro a visão no rolo…)

XIII

A visão era Georgette:
Vinha com fato de artista.
Ela dançou, na revista,
E eu fiz de marionete…

Vida La Feria apresenta:
«P’ro que Jamais se Contenta,
Um Passatempo: O Regret».

XIV

Já o previa…
Tudo começou,
Era uma vez um dia…
Quando te vi, Georgette.

O mundo terminou…
E eu dormia!
C’est chouette!

XV

Estavas tu numa esplanada a beber um J.B.,
Eu estava numa barraca com a placa W.C.;
Pela porta da barraca, buraco da fechadura,
Pude ver, além das roupas, toda a tua formusura…


XVI

O fogo que me ateaste
(Foste tão cruel, Georgette!),
Queimou-me a pele quanto baste,
Fez do coração miettes…

Precisava de apagá-lo:
Mergulhei-me na retrete…

Melhor assim suportá-lo,
Melhor assim to forget…

XVII

O amor é uma merda.

XVIII

Eu vi-te Georgette,
A fazer de Gigante.
A fazeres-te de grande,
Com um coração pequeno.

Eu vi-te e vi em ti o medo:

Estavas a fazer d’ haste.
Estavas a fazer d’ haste.
Estavas a fazer d’ haste.

E eu a fazer de Rochedo…

XIX

Estamos todos.
Somos estagnação e lodo.

Somos paúl.
Devemos ser parados.

Pântano em si mesmo afundado,
Pântano em si mesmo afundado,
Pântano em si mesmo afundado…

XX

Sentir amor,
Estar cansado,
Sentir a dor,
Estar cansado…

– Aspira a dor!,
– Estou cansado,
– Inspira a dor,
– Estou cansado,
– Conspira a dor,
– Estou cansado,
– Respira a dor!,
– Estou cansado!

E tenho o pulmão parado,
E tenho o pulmão parado…

Tenho pena, tenho pena,
Mas não tenho melhor Fado…

XXI

Tenho pena, fico triste,
De saber que o amor existe
E de não saber usá-lo.
Mas depois de amar um pouco,
De sentir o que sentiste,
Surge-m’isto, como um sôco:
O amor em que consiste?
Em dormir. Dormi. Dormiste.
E depois despertei louco…

Melhor assim suportá-lo…


XXII

Mas Georgette,
Georgette,
Georgette,
Nome em que a mágoa se repete,

EU SOU ADAMASTOR,
EU SOU A DAMA ESTÔRE,
EU SOU A DANDYS’ STORE
EU…

E tu a dares-te uns ares de…
Se algum dia eu te amar terás de…

XXIII

Busco o resto de mim que se perdeu…
Amei.
Caí.

XXIV

Com’hei-d’amar se me desvaneci?

Joguei. Joguei. Joguei.
Joguei até me cansar.
Perdi.

XXV

Ser Livre!
Ser Doido!
Alucinar!

Delirare humanum est.

Errauit, erro, errabo.

XXVI

Enrabo quando posso,
Quando não, sou enrabado.

Ser Gay, ser Gay,
Tremendo fado!…

(Lamento da Monarquia)

XXVII

– Quando serei Gay?
– Já o és Duarte.
– E importante?
– Um dia.
Quando o português perder a sua parte
De reflexão sadia…

– Oh, Santa Isabel!,
Não fosses tu que seria!
– Aquilo que tu já és
Mas mais virgem que Maria…

XXVIII

Georgette,
Georgette,
Georgette,

Náusea, horror que se repete,
Tão negra foi a hora em que nasci!

XXIX

Náusea, horror que se repete…

XXX

TO BE
IS NOT
TO BE…

Lausanne, 03/09/04 – 09/09/04.

Friday, June 8, 2007

Outra Insónia

Acordo do sono mal dormido
E vou à janela.
Nada se distingue no escuro
Senão a silhueta de um poste sem luz.
Está frio – Fecho a janela.
Se ao menos esta aragem
Pudesse refrescar-me toda alma! Mas
Sou tão soturno! Nada me seduz!
Tenho raiva às coisas e um terror da gripe –
Melhor será voltar ao leito
E sonhar, enfim, com a boa vida antes
Que me constipe!

Ah!, odeio esta consciência de falta de sono!
Odeio esta necessidade de sono para poder dormir!
Odeio a necessidade de ter de dormir!
Odeio qualquer necessidade!
Odeio a possibilidade de poder odiar!

Não quero anestésicos; soporíferos;
Não quero conselhos.
Não quero nada, absolutamente, que não implique o vazio
Da percepção de um corpo com movimento
Mas já sem alma que o justifique activo.
Não quero esta angústia que trago comigo:
Não quero senão a solidão de um convento.

Exijo um Confessionário.
Exijo um padre particular.
E a força interior, e o cutelo
Com que o possa esventrar.

Exijo alguém que me ouça e que se cale;
Alguém que possa vir pegar nas minhas mãos
Sem depois querer trepar ao meu pescoço;
Alguém que sare a minha Solidão
E as feridas do corpo.
.
Quero alguém que me empreste um ombro amigo
E não venha cobrar essa amizade;
Alguém que suporte por mim o castigo
Da minha Humanidade.

Pois ser Humano
É cada um conceber um Cristo
E por Ele dar a outra face,
Por Ele o Jardim das Oliveiras,
Por Ele conhecer Judas
E ser beijado por Judas,
E ser traído por Judas,
E blasfemado por Judas,
E flagelado por Judas,
E por Ele crucificado
(Depois de enforcado no tronco mais alto da maior figueira)
E morrer feliz com o grito triunfal de uma bondade possível,
Promessa de um lugar num Céu idealizado
Mas superior a qualquer ilusão:
Um Céu tão real, tão palpável,
Que seja mais do que um reflexo na água –
(A água da minha perdição)…

Mas ainda sem dormir.
Ainda sem ter os olhos pesados.
Levanto-me.
Visto o robe.
Calço os chinelos que não gosto de usar e que não sei onde tenho;
Avanço no quarto onde durmo mas que nunca conheci bem;
Vou até ao armário que abre para trás e não fecha bem as portas;
Escancaro-o.
Tiro de lá um qualquer objecto que descobri depois não ser tão necessário.
Afinal, procurava outra coisa –
Era Eu.
Era Eu!
Não o que fui,
Não o que sou,
Mas o que um dia poderei vir a ser.
Talvez por fazer parte do Futuro,
Eu,
Não me achei no armário.
Eu, não me achei no armário –
Que fique assente –
Levanto-me e escrevo:
«Eu…»

Mas de que serve assentar impressões, descobertas, realidades?
De que adianta justificar o Mundo?
Eu não existo mais por assenta-lo num papel pintado de tinta.
Eu não sou mais Homem por expressar num texto a minha Humanidade.
Nem sou menos Eu por não declarar a minha Individualidade.

Sou ou não sou
(Porque duvido também da existência)
Por ser ou não ser
E segundo apenas a circunstância possível de existir realmente
(Vivido e não sonhado)
Num determinado tempo num preciso espaço.
Sou decomposição de um sentimento
No que sinto de mim.
Sou inacção, preguiça, tédio, esgotamento físico da mente,
Aniquilação gradual das ideias.
Não me concebo por fora nem por dentro.
Não me imagino em nada de realização plena
Em nada que se conceba seriamente
E de que possa dizer-se à boca cheia:
«Gentes olhai a criatura! –
É o filho de Deus tentado p’la serpente
Que apesar da maldição de Eva
Vive e perdura! –

É o coração que palpita num corpo inundado de artérias!
É o espírito oriundo do Éden que abençou Homero e Shelley
E Camões e Goëthe
E Wilde e Pessoa,
E Hugo, Mallarmé
E Milton e Shakespeare
E Petrarca e Dante!
É a mão divina a descer sobre o corpo e a dizer-lhe que ande…

Mas não sou nada senão o desejo de sono
Que não tem modo possível de chegar.
Não sou nada para além de um Outono
Que apodrece os frutos mais belos do pomar.

Porque definho.
Porque abomino a inércia
Mas é com ela que vivo;
Porque desejo uma vontade minha
Uma música minha,
Uma luz que brilhe apenas para mim,
Que tenha origem na minha consciência,
Sem ter nada, no entanto, que deseje; assim,
Destas horas de tédio em que me vejo absorto,
Em jeito de penitência,
Concebo para a minha Humanidade
O suplício da lança, da chibata e da cruz,
Antes, durante e depois do Calvário.

Assim, Eu,
Objecto material da minha insónia,
Declaro-me Sobre-Humano
Por oferecer aos Homens este esboço de luz: (…)

Eu,
Que não sei onde estou,
Que não me conheço,
Que já não tenho ambições para a vida
Nem vida que ambicionar,
Aqui,
No escuro e no frio do meu quarto,
Por onde vagueio em círculos,
I n t e r m i n a v e l m e n t e
Estipulo deliberações urgentes para se operar a matança:

Conciliemo-nos:

Agarraremos o boi pelos cornos.
Atar-lhe-emos as patas.
Prendê-lo-emos a uma mesa de pedra (coberta com uma toalha de linho)
E diremos com pompa: «É um altar!».
Tomaremos nas mãos os Eternos Punhais afiados pelos anos;
Mataremos o boi –
Dirá uma voz de dentro: «Matámos a dor!»
Dirá uma voz de fora: «É tarde! Está na hora! Acordar!»

Há insónia afinal até enquanto durmo.
O homem que me sonha, quando irá despertar?

Thursday, June 7, 2007

Acordo do meu Sonho e Não Sou Nada [1]

Num Reino mais distante que o Pensado,
P’r’álém das fronteiras do Impossível,
Vivia um soberano atormentado
Por ânsias de Infinto e Imperecível;

Passava horas sem pegar no Sono,
Cismando planos p’r’álcançar o Vácuo;
Mas, quanto mais se punha ao Abandono,
Mais queimava em si um Fogo-Fátuo.

Queria ser etéreo, inatingível,
Domar o Caos e consagrá-lo ao Cosmos,
Vergar os sentimentos tão a esmo;

E transformou-se em sombra imperceptível,
Sopro de um homem caminhando a rojos,
Quixote encoberto de si mesmo…

Lisboa, 28/08/01

[1] Nota do Autor: Verso de Florbela Espanca.
Para a Prof. Isabel Almeida, minha professora de História em 94-95. (Não o verso de Florbela Espanca, que não posso dar por não me pertencer, mas o poema). Nunca cheguei a agradecer-lhe aquele antigo poema… Proponho assim este como paga. O último verso, há-de reconhcê-lo como seu. Eu, em vez disso, reconheço-o como sendo "eu próprio"…

Sugestão

Já que todos os métodos falharam
(Mesmo aqueles que julgámos mais absurdos),
Vamos ser quais barcos que encalharam
Em rochedos p’ra lá do fim do Mundo;

Já que não resulta o comprimido
Ou a droga simples do café,
Dêmos, do corpo, o que resta, por vendido
E desmontemos o velho estaminé;

Já que a carne está p’ra lá dos ossos
E que os ossos estão além da pele,
Enlacemos cordas aos pescoços
E subamos por eles!

Já que cansam demais as dores da vida
E não há vidas, aí, para trocar,
Vamos injectar insecticida
Na artéria pulmonar;

E, se mesmo assim, após tantos projectos,
A Morte, a própria Morte, não chegar…
Partilhamos a dor com os objectos,
E bebemos o spleen em qualquer bar?[1]

Lisboa, 20/08/01

II

E Ela um dia há-de vir,
E Ela um dia há-de estar
Aqui mesmo, onde respiro,
Seja qual for o lugar…

Lausanne, 21/09/04

[1] Nota do Autor: Versão Alternativa: Partilhemos a dor com os objectos/ (e) bebamos do spleen em qualquer bar.
O conjuntivo, denuncinado a certeza, carrega afinal tanta dúvida quanto a forma interrogativa acima escolhida. De facto, para qualquer dos casos, é necessário um consenso, e a minha esquizofrenia não acha modo de estabelecer um quorum. Cf. a política nacional e internaconal para melhor compreensão deste problema.

Wednesday, June 6, 2007

Imperfeições

Somos carne, é certo, e da mais vil,
Em busca da matéria com que cumpra
O desejo mais torpe, o tom servil
Da revolta das células que a juntam.

Somos tábuas, boiando, de navios,
Ou dispostas a arder numa fogueira,
E intensamente somos, existimos,
Até que o fogo torne cinza a lenha.

Restos de ser, disposições de estar,
São a tua e a minha triste sorte
Que suportamos num esforço largo e fútil.

E agora é a fúria, o praguejar,
Que ficam vivos entre nós e a Morte;
E da vida, nada, vão retrato inútil…

Lisboa, 06/02/00

Nas Bocas do Mundo

I

Disseram que havia morte,
Aí, onde moravas.
Disseram que passara um vulto pelas ruas
E que voara, depressa, sobre as casas,
Uma bruxa horrenda que devorara a lua.

Disseram ver o céu a transcender-se
E a pousar à noite nos quintais –
Era o Anjo de Deus a arrepender-se
De invejar a sorte dos mortais.

Disseram que o Olimpo rejeitara
As três irmãs, escravas do Destino,
Condenadas à pena do tear;
E elas, coitadas,[1] lá se resignavam
A estar num canto, com o seu ar franzino,
Mudas, imóveis, a fiar,
Esperando que rompesse o que fiavam.

Disseram que choravas junto ao cais
Com soluços de abalar o Mundo.
Não chores, amor, não chores mais:
Se puseres no peito aquela tábua
Não saberás mais o que é a mágoa
Não te moldarão mais como chumbo!

Lisboa, 19/09/99

II

Nas bocas do Mundo anda a notícia da Morte.
Parece haver aí um cavaleiro
Com uma foice dourada e um portentoso porte
Colhendo em vez do trigo
O próprio ceifeiro.

Nas bocas do Mundo anda o horror do jazigo.
Parece haver aí uma caverna
Com um bafo a azedo e um frio inimigo
Que sopra sobre a vida
E lhe apaga a lanterna.

Nas bocas do Mundo anda um agoiro de ferida.
Parece haver aí um precipício
Com um monstro hediondo de fome incontida
Comendo, (com garras tão peludas!)
Os mortais, em bulício!

Nas bocas do Mundo anda o tormento de Judas:
Parece haver aí a consciência
(Com espasmos, orações, súplicas e juras)
De um terrível erro
Sem remédio ou clemência...

Oh!, Talvez se redima a alma na fervura
– A fogueira padres!
Ah! Talvez se corrija pelo fogo a essência
– Ardes ou não ardes?
Uh! Talvez ainda me retrate o enterro!
– Mas há uns vermes alarves que me metem medo...
Há uns vermes alarves que me metem medo
Nem me servem grades...

Arre! Mando as bocas do Mundo p´r’ó degredo –
Que o pesadelo da conjectura acabe!

Lisboa, 12/01/02

[1] Nota do Crítico: Versão alternativa: Sentadas. Esta versão, originalmente rasurada pelo autor, foi depois reescrita a caneta vermelha. O manuscrito denuncia ainda uma mancha de chá. Provando-se que o autor tomava refeições em concomitância com a redacção dos seus poemas, muito pode ser explicado. O «Manifesto Anti-Panças», por exemplo, contrariando a originária interpretação de que seria uma paródia da paródia de Almada, vem, à luz deste facto, revelar que o autor sofria, severamente, do mal de indigestão. (Vide biografia).

Tuesday, June 5, 2007

Pela Estrada Fora…1

Cap. I - O PRINCÍPIO:

Estou a viajar no meu carro que não sei guiar,
Ao longo de uma estrada nocturna,
Com destino ainda por estabelecer.

Estou onde não sei se quero estar.
A paisagem é mais bela quando não é diurna.
A noite é um terrível que inicia o prazer.

Não reparo nos sinais de trânsito;
Não olho para as tabuletas que,
Iluminadas pelos faróis,
Assinalam persistentemente os nomes de localidades que não conheço
E onde nada me interessa...

Tudo por onde passo tem a cativante Felicidade do Desconhecido...

O que fazer? Passar!
Sentir a atracção do Indefinido!

Cap. II – A EXPLICAÇÃO:

Atravesso paisagens monótonas de cimento,
Campos com árvores e animais de pasto,
Casas isoladas onde não sei se alguém mora,
E nunca paro,
E não olho quase,
E não aprecio
Porque não quero,
Porque o amargo de boca que me deixou a vida
Não me deixou alguma vez apreciar.

Por isso escolhi não provar dos seus frutos…

E não olho.
Não paro.
Não contemplo.

Ao longe,
Em frente,
Vê-se apenas estrada
Diminuindo mais e mais no seu ponto de fuga,
Fechando-se à minha frente,
Confundindo-se com um céu sem côr.
O conta-quilómetros que não sei ler
Acusa progressivamente a distância percorrida;
Mas na verdade,
Não tenho um modo efectivo de calcular a distância;
E que lucro, mesmo que soubesse medi-la,
Me traria esse cálculo?

Por isto abomino a matemática:
As suas resoluções claras,
As suas lógicas bem medidas,
As suas verdades científicas;
Elas
Ocultam a verdade maior de não haver Ciência
Ou Lógica
Ou Resoluções,
E de existir apenas a dúvida.

As Ciências
São uma outra forma de religião.
São uma fé que pomos nas coisas que nos rodeiam,
Nas coisas que imaginamos,
Para sossegar
Um curioso coração inquieto.

A Lógica
É uma alucinação da inteligência,
Uma paternalização do ego,
Estabelecida para afirmar uma ordem
Onde ela por si mesma
Não pode ser possível.

A Resolução
É uma afirmação após um cálculo
Que surgiu de um Sistema imaginado
E, por isso,
Como efectividade,
Irreal.

Por isto,
Apago esses três monstros da criação sistemática
Da memória das coisas que fazem parte de mim,
E sigo em frente, na estrada,
Sem certezas, só bruma,
E uma falta de noção das direcções:

Norte, Sul, Princípio, Fim…

Onde estão estes deuses das nossas Sensações?
Onde os contornos de nós, monstros de espuma?

Algures em frente;
Algures no inexplorado;
Algures por aí.

Assim,
Eu sigo em frente,
E nunca paro;
Porque é em frente que está
(Sei, pouco claro)
O caminho que me faz progredir.

Assim,
Sou claramente
Pouco claro.
Mas é em frente que está
(Além do breu das sensações com as quais me deparo)
A ideia de luz que me vai definir.

Assim,
Primo no pedal
Acelerador:

(…)

Vozes de Mim: Antecipo o mal
Antecipo a dor.

(…)



Cap. III - DIVAGAÇÃO:

No fim quero a paz.

(Vejo o fim ao fundo
Um mover ao longe)

Que monstro ma traz?

(Tem um ar imundo,
Um capuz de monge)

Virão coisas más?

(Não há muito tempo
Sentia sossego)

Será que existia?

(Mas do céu cinzento
Caiu um bruxedo)

Eu então dormia…



(Primo no pedal
Acelerador.
Antecipo o mal
Antecipo a dor).



INTERLÚDIO:


Vozes da Noite: De que foges fugitivo?
Porque segues nessa estrada?
Que deus te pôs de fugida?

Foi o Carnaval?
Foi o Amor?

Vozes de Mim: Isso de que falas é a Vida…



Cap. IV - O INFINITO:

E aquela distância antiga,
Já bem mais perto de mim,
Dá lugar a uma outra
Que eu jamais percorri.

(…)

(Primo no pedal
Acelerador.
Antecipo o mal
Antecipo a dor).

(…)

Não sei se algum dia poderei conhecê-la…

(…)

(Primo no pedal
Acelerador.
Antecipo o mal
Antecipo a dor).



Cap. V - REVELAÇÃO:

Porque a distância a percorrer é infinita
Mas é finita a nossa capacidade de correr por ela.



(…)

(Primo no pedal
Que me atira em frente.
Ser-me-à fatal?
Ficarei contente?)

(…)

(Primo no pedal
Acelerador.
Antecipo o mal…)

(…)

Cap. VI - PERCURSO:

Deixo árvores e casas para trás.
Abro a janela.

(…)

(E quero paz, quero paz!
Onde está ela?!)

(…)

Passar pelas coisas, passar por mim o vento.
Avançar esquecendo a velocidade.
Deixar um pouco de mim no que contemplo.
Fazer parte de tudo… Liberdade!



Cap. VII - A VONTADE E O CHAMAMENTO:

Abstrair-me.
Sentir as coisas todas como sendo elas.
Depender o eu ser desta viagem.

Reconstruir-me.
Ser um Mapa-Mundo: Lisboa, Paris, Bruxelas.
Viver por dentro, nunca estar à margem.

Sentir-me
Inteiramente
Nesta estrada.
Todo eu ser percurso.

Confundir-me
Com tudo
E por isso
Ser nada.

Ser um outro animal:
Cavalo, tigre, urso…

Ser o motor do meu automóvel.
Banhar-me em óleo, chupar combustível:

Vrrrrrrrrruuuuuuuum!
Vrrrrrrrrruuuuuuuum!
Vrrrrrrrrruuuuuuuum!

Fios hidráulicos, cabos, porcas, chapa, rodas, parafusos!
Coisas do meu corpo, o seu suporte móvel!
Maravilhas eternas do Incrível!
São vocês a carne, vocês dão-me uso!

Ah!, metafísica!
O som do motor cola-se-me nos ouvidos!
O rugido do coração do meu carro ecoa pela noite acordando os mortos!

Hei lá!
Hei lá!
Hei lá!

Vamos irmãos!
Acordai do Sonho, da Calma, da Exaustão!
Sou eu que passo o meu motor pelos campos!
Há uma festa cá fora!
É a vida que promete esgotar-se na vida
E renovar-se na noite que tudo renova!

Restaurai as mentes!
Ressuscitai os corpos!

Vrrrrrrrrruuuuuuuum!
Vrrrrrrrrruuuuuuuum!,

Hei lá!,

Acordai!
Acordai!
Porque dormis ainda?

Eu sigo nesta estrada até não poder mais!
O meu querer corre-la nunca finda!

O que esperais?!
Que esperais??!
Segui comigo, irmãos!,
Segui comigo!!

Que não vos pare o chão,
Que não vos prenda o jazigo!

Tenho mais a ter da vida do que o caminho que sigo!,
Tenho mais a ter da vida do que o caminho que sigo!,
Tenho mais a ter da vida…



Cap. VIII - O OBSTÁCULO:

Espera… Abranda um pouco…
Vejo agora um cruzamento, logo a seguir a um troço.

Há uma linha de comboios guardada com cancela.
A viagem
Trouxe-me a um desses sítios sem espaço realmente efectivo,
Por não vir nunca mencionado nos mapas:

Que tenha gente feliz que possa ensinar-me a sê-lo!

Quem sabe,
Fora do alcance das noções e medições cartográficas,
Esteja também fora do alcance das contrariedades da vida,
E das desilusões,
E dos desgostos,
E das insónias,
E das frustrações inerentes a todas as circunstâncias da Natureza Humana.

Olho em frente.
Assalto de pé firme no acelerador
Os ferros cinzentos da passagem de nível.

Por um cruel infortunio das circunstâncias
(Aquelas que nos perseguem mesmo nas localidades não cartografadas),
A minha hora de passagem
Não conseguiu coincidir
Com a hora de passagem do comboio.

As circunstâncias têm o condão de operar
Contrariamente às nossas expectativas:

Não esperes.

Por conhecer nesta máxima a sua sabedoria,
Eu nunca espero no caminho que sigo
E vou sempre em frente.



Cap. IX - A CONSCIÊNCIA:

As curvas são a diversão
Que te leva ao antigo caminho.

E eu,
De antigo,
Quero só a lembrança
De ter sido novo
E não conhecer nada
E de não precisar de horas para existir.

Hoje, que ganhei consciência,
Desejo apenas o desconhecido
Por onde passarei só uma vez:

Se não repetir experiências,
Como posso dizer que sei verdadeiramente das coisas?

Pode ter sido tudo um grande sonho
Como se nunca tivesse deixado de dormir...

E sigo em frente,
E nunca paro
Porque é em frente que está
(Sei, pouco claro)
O caminho que me faz progredir.



Em frente está o sonho prometido
No consolo do sono mais cruel.

Em frente está a sombra do abrigo,
O néctar que põe de parte o fel.

Em frente está o ar mais respirável,
Está a promessa de abrigo;
Está o Olimpo, Sublime e Inalcançável,
Está a escrita –

(Sublimação da desdita
Que trago sempre comigo).

Em frente a promessa de passagem
Além da porta interdita.

(Em frente o perigo…)



Por isso,
Vou em frente,
Em frente,
Ditoso sigo.

Estou feliz porque não estou aqui.
Estou feliz porque não estou aqui.
Estou feliz porque apaguei o real
Cortei assim a raiz do mal
Cortei assim a raiz do mal
Cortei assim a raiz do mal
Cortei assim…

Sigo.



Último Capítulo - DESPERTAR:

As luzes do meu carro
(Que não tenho)
Confundem-se com todas
As luzes da noite.
Caso estranho!, O cinzento de mim…

(Tanto pó em mim, tantos ácaros!,
Tanto pó em mim, tantos ácaros!,
Usem-me!, usem-me!,
Tirem-me da prateleira!
Usem-me!, usem-me!,
Tirem-me da prateleira!)

E o cinzento de mim…

(Mas usem-me!, usem-me!,
Que não me sinto ser!,
Usem-me!, usem-me!,
Que não me sinto ser!
E se eu voltar a mim
E não me conhecer?!
E se eu voltar a mim…)

Sim. O cinzento de mim
Confunde-se com este céu cinzento –

(No céu sou eu,
É o que eu tenho dentro,
No céu sou eu,
É o que eu tenho dentro,
No céu sou eu…)

Espera;
Pára no semáforo…
Como escrevo e guio ao mesmo tempo?


10/01/02 – 29/04/04

(…)

(De Lisboa onde ainda bate o Sol, ao decadente cinzento de Bruxelas)…

1 Nota do Autor: A metáfora tem já escamas de tão velha: A estrada é a vida, evidentemente...

Carta para Correio Azul - (Parca Adaptação de um Poema de Eugénio de Andrade)[1]

É urgente o amor!
É urgente um barco no mar!
É urgente dar-lhe asas de condor
E pô-las a voar!

É urgente destruir certas palavras,
Ódio, Solidão e Crueldade,
Que se atiram de pontas aguçadas,
Prontas a matar a Liberdade!

É urgente fazer do peito um ninho
E multiplicar beijos e searas!
É urgente descobrir rosas e risos
E desabrochar as manhãs claras!

É urgente cultivar a alegria
E não deixar a planta esmorecer!
É urgente uma flor nas nossas vidas!
É urgente o amor…permanecer!!!
Lisboa, 17/01/98

[1] Nota do Autor: De facto, é impressionante o efeito de uma parca adaptação

Monday, June 4, 2007

Alucinações

I

Foi no Chiado que eu te vi, ò diva!,
Altiva, má, segura, confiada;
Atrás de ti corria a comitiva,
E tu, tão presumida, tão mimada!

Ardeu em mim a febre, a inquietação,
Senti que me fremia um tremor bruto;
Desceu, enfim, sobre o meu coração,
O frio da morte, o tenebroso luto!

Perdi o chão andando e, num momento,
Senti no peito um estrondo e em plena rua
Saltou-me o coração descompassado!

O caso, de tão raro, é um portento!
Por teu olhar, só, diva, e graça tua,
Um coração jaz morto no Chiado…

Lisboa, 08/04/00

II

Felizmente passou, junto a uma grua,
Um casal de agentes da polícia,
Trajado com o máximo cuidado.

Nas suas botas limpas de perua
(Tão próprias da brigada e da milícia),
Reflectiu-se um lindo céu estrelado.

Recebi de chapa a luz da lua
Que me acordou de cena tão suspícia,
E me ensinou que eu estava embriagado -

Alucinei-me, claro, em sub-reptícia!
E esse delírio é que me dava a pua…
O álcool sempre foi um bom diabo!

Lisboa, 02/01/08

Sunday, June 3, 2007

Propensões para o Sentimento Vindas do Leito e do Sono

Tenho sentido[1]
A Solidão completa da minha poesia.
A minha alma abstracta, esmagada de agonia,
Tomba sem sentidos.[2]

O meu desgosto é sentido;[3]
Não o finjo. Apenas finjo a vida;
Mas como tudo me passa, à frente, de fugida,
Já não fico sentido.[4]

Faz lá isto sentido![5]
O quotidiano é chato, é uma porcaria!
E a necessidade diária de ir à tabacaria
Põe-me a ira em sentido...[6]

Este frenesim inquieto
Que me exige o tabaco é de morte!
Maldita propensão para o vício! Pouca sorte
Ser de coração inquieto!

Queria mais estar estendido,
Sem sombra de arrelias, numa praia límpida;
Mas a imagem dessa probabilidade, longe de ser nítida,
Impossibilita-se. Só o tédio é estendido:

(--------------------------------tédio------------------------------)

Mas do tédio não quero a companhia.
Nem quero relações de circunstância.
Que se danem este pasmo, esta agonia!,
Três poderosos «Vivas!» à jactância!

Que maçador ser poeta!
Juro hoje mesmo que de hora em diante
Não mais escreverei. Tornar-me-ei asceta.
Até estala esta ideia alucinante!

A minha solidão
É grande e profunda porque antes de mais é pensada.
Não é daquelas ausências que se sentem com a emoção:
É uma racionalização incontrolada.

Por este motivo,
O meu maior desejo é não pensar em nada;
Mas também na ausência há um motivo
De deliberação. A ilusão é, pois, justificada.

Pensar será, portanto,
Um exercício de não pensar em nada:
Um estar ausente de mim num qualquer canto
Onde toda a consciência é sufocada.

De facto, não quero fazer sentido –
Que sentido existe no existir?
O melhor, com tudo, é não reflectir,
E rir de tudo sem ficar sentido;

Partir à deriva, sem qualquer sentido[7]
Determinado, decidido antes –
Os cálculos da vida são p'r'ós ignorantes
Que passam, só, dormentes dos sentidos.

Sou vago, mas sentido;[8]
Sou um abstracto, sem recurso a matemáticas;
Mas as minhas loucuras, manifestações práticas,
Deixam-me sempre em sentido:

Estou acordado p'r'ó Mundo,
Mesmo se vivo no fundo
Do fundo abismo de mim:

Mesmo se não me sinto
Nesse sentir do concreto
Sinto que sint'outro corpo,
Do Outro que tenho perto:

O outro homem de luto
Que mora dentro de mim;
O outro ser com que luto
P'r'álém do Tempo e do Fim –

Sem ti do ar que respiro
O que respiro porém?
Contigo do ser que vivo
Sinto viver-me ninguém.

Mas isto não tem sentido,
É uma névoa em suspenso –
Que 'é então este alarido
Sobre o que sinto ou o que penso?

É a vida que está doente,
Sou eu num sonho que passa.
E um sonho inconsequente,
Qu' importa o senso que faça?…

Lisboa, 28/10/02

Notas do Autor:


[1] Experimentado.
[2] Percepções sensoriais do corpo, que não os orgãos; ausência de consciência.
[3] Sincero.
[4] Magoado; com ressentimentos.
[5] Nexo.
[6] Desperta; em posição de rigor militar.
[7] Direcção.
[8] Vivido, apreendido pelas sensações.