Friday, June 8, 2007

Outra Insónia

Acordo do sono mal dormido
E vou à janela.
Nada se distingue no escuro
Senão a silhueta de um poste sem luz.
Está frio – Fecho a janela.
Se ao menos esta aragem
Pudesse refrescar-me toda alma! Mas
Sou tão soturno! Nada me seduz!
Tenho raiva às coisas e um terror da gripe –
Melhor será voltar ao leito
E sonhar, enfim, com a boa vida antes
Que me constipe!

Ah!, odeio esta consciência de falta de sono!
Odeio esta necessidade de sono para poder dormir!
Odeio a necessidade de ter de dormir!
Odeio qualquer necessidade!
Odeio a possibilidade de poder odiar!

Não quero anestésicos; soporíferos;
Não quero conselhos.
Não quero nada, absolutamente, que não implique o vazio
Da percepção de um corpo com movimento
Mas já sem alma que o justifique activo.
Não quero esta angústia que trago comigo:
Não quero senão a solidão de um convento.

Exijo um Confessionário.
Exijo um padre particular.
E a força interior, e o cutelo
Com que o possa esventrar.

Exijo alguém que me ouça e que se cale;
Alguém que possa vir pegar nas minhas mãos
Sem depois querer trepar ao meu pescoço;
Alguém que sare a minha Solidão
E as feridas do corpo.
.
Quero alguém que me empreste um ombro amigo
E não venha cobrar essa amizade;
Alguém que suporte por mim o castigo
Da minha Humanidade.

Pois ser Humano
É cada um conceber um Cristo
E por Ele dar a outra face,
Por Ele o Jardim das Oliveiras,
Por Ele conhecer Judas
E ser beijado por Judas,
E ser traído por Judas,
E blasfemado por Judas,
E flagelado por Judas,
E por Ele crucificado
(Depois de enforcado no tronco mais alto da maior figueira)
E morrer feliz com o grito triunfal de uma bondade possível,
Promessa de um lugar num Céu idealizado
Mas superior a qualquer ilusão:
Um Céu tão real, tão palpável,
Que seja mais do que um reflexo na água –
(A água da minha perdição)…

Mas ainda sem dormir.
Ainda sem ter os olhos pesados.
Levanto-me.
Visto o robe.
Calço os chinelos que não gosto de usar e que não sei onde tenho;
Avanço no quarto onde durmo mas que nunca conheci bem;
Vou até ao armário que abre para trás e não fecha bem as portas;
Escancaro-o.
Tiro de lá um qualquer objecto que descobri depois não ser tão necessário.
Afinal, procurava outra coisa –
Era Eu.
Era Eu!
Não o que fui,
Não o que sou,
Mas o que um dia poderei vir a ser.
Talvez por fazer parte do Futuro,
Eu,
Não me achei no armário.
Eu, não me achei no armário –
Que fique assente –
Levanto-me e escrevo:
«Eu…»

Mas de que serve assentar impressões, descobertas, realidades?
De que adianta justificar o Mundo?
Eu não existo mais por assenta-lo num papel pintado de tinta.
Eu não sou mais Homem por expressar num texto a minha Humanidade.
Nem sou menos Eu por não declarar a minha Individualidade.

Sou ou não sou
(Porque duvido também da existência)
Por ser ou não ser
E segundo apenas a circunstância possível de existir realmente
(Vivido e não sonhado)
Num determinado tempo num preciso espaço.
Sou decomposição de um sentimento
No que sinto de mim.
Sou inacção, preguiça, tédio, esgotamento físico da mente,
Aniquilação gradual das ideias.
Não me concebo por fora nem por dentro.
Não me imagino em nada de realização plena
Em nada que se conceba seriamente
E de que possa dizer-se à boca cheia:
«Gentes olhai a criatura! –
É o filho de Deus tentado p’la serpente
Que apesar da maldição de Eva
Vive e perdura! –

É o coração que palpita num corpo inundado de artérias!
É o espírito oriundo do Éden que abençou Homero e Shelley
E Camões e Goëthe
E Wilde e Pessoa,
E Hugo, Mallarmé
E Milton e Shakespeare
E Petrarca e Dante!
É a mão divina a descer sobre o corpo e a dizer-lhe que ande…

Mas não sou nada senão o desejo de sono
Que não tem modo possível de chegar.
Não sou nada para além de um Outono
Que apodrece os frutos mais belos do pomar.

Porque definho.
Porque abomino a inércia
Mas é com ela que vivo;
Porque desejo uma vontade minha
Uma música minha,
Uma luz que brilhe apenas para mim,
Que tenha origem na minha consciência,
Sem ter nada, no entanto, que deseje; assim,
Destas horas de tédio em que me vejo absorto,
Em jeito de penitência,
Concebo para a minha Humanidade
O suplício da lança, da chibata e da cruz,
Antes, durante e depois do Calvário.

Assim, Eu,
Objecto material da minha insónia,
Declaro-me Sobre-Humano
Por oferecer aos Homens este esboço de luz: (…)

Eu,
Que não sei onde estou,
Que não me conheço,
Que já não tenho ambições para a vida
Nem vida que ambicionar,
Aqui,
No escuro e no frio do meu quarto,
Por onde vagueio em círculos,
I n t e r m i n a v e l m e n t e
Estipulo deliberações urgentes para se operar a matança:

Conciliemo-nos:

Agarraremos o boi pelos cornos.
Atar-lhe-emos as patas.
Prendê-lo-emos a uma mesa de pedra (coberta com uma toalha de linho)
E diremos com pompa: «É um altar!».
Tomaremos nas mãos os Eternos Punhais afiados pelos anos;
Mataremos o boi –
Dirá uma voz de dentro: «Matámos a dor!»
Dirá uma voz de fora: «É tarde! Está na hora! Acordar!»

Há insónia afinal até enquanto durmo.
O homem que me sonha, quando irá despertar?

No comments: