Saturday, June 2, 2007

Num Bar

O embusteiro percorre os longos trilhos do bar.
É um actor cansado de novelas.
Faz tanto tempo já que anda a brincar
Por palcos e por telas!

Passa por gente e por coisas, mas tudo é sombra e tristeza.
Vive no Além, e abstrai-se, ausente.
Há muitos anos, era só leveza!
Hoje ele está diferente!

«Álcool! Antes que eu desmaie! A sobriedade adoece!
Acaso quer você que eu desfaleça?!»
E suplica um bagaço com uma prece,
Gingando com a cabeça!

No fundo está sozinho e quer cuidados. É humano!
Mas falta-lhe o governo de si próprio.
Vê fragmentos de si (e isso é um dano),
Como um caleidoscópio!

E julgando-se um ortónimo de outras vidas plenas
Recria-se em mais de mil maneiras.
Julga que assim mascara as suas penas!
E finge horas inteiras!

Faz um esforço insano, o que é de loucos!, para disfarçar
A frustração que sente em ser o que é.
Quer-se excepcional mas sabe-se vulgar –
Foi criado à má fé!

É um «engenho estragado!» de acordo com o seu prisma,
E qualquer aparelho quer concerto.
A cura do seu «estranho cataclisma!»
É ter um bar aberto!

Um bar com gente, «ai! É Vinicius de Moraes! É Samba!»
É «A Felicidade» e outros sons!
Dancemos com o bagaço em corda bamba!
E a banda dá os tons!

«Amigos!, Pago duplos para todos! É minha a noite!
É minha a dor que trago só comigo!
Eu insisto! Já disse! Não se afoite!!
Cá está! Chamo-lhe um figo!

Aquela diva além, quero dançar! Que pernas lindas!
O Samba é festa! Ai, vem balançar!
Vem, doce, que eu te dou as boas-vindas!
Tens só tu de me amar!

Porque eu estou tão vazio no meu por dentro, ai sem razão!
Vivo em tonturas de me ter em mim!
Cansei-me de dar corda ao coração,
E o coração sem fim!

Hoje estou deprimido e eclipsei-me. Fora, Mundo!
Hoje quero o prazer de não lembrar.
Por isto, embebedei-me. Estou imundo!
Pudesse antes não estar!

Mas que sufôco, meu Deus! Abram janelas! Mais luz!
Matem gente, se acaso for preciso!
É indiferente, nada me seduz!
Nem o amor, nem o riso!

Sirva outro, garçon! É p’r’átestar! E não me embaia!
O outro que me deu soube-me a pouco.
Também Deus me deu vida, e tinha raia! –
Por isso fiquei louco!

Limites no sentir??! Tudo tão breve! Febre e Horror!
Doença de pensar e de ter ânsias!
Somos a lebre e o Tempo é o caçador!
Tudo o mais são distâncias!

Passam segundos, passam horas, meses, passam anos!
E, como os whiskyes, duplos de amargura!
E eu que passo em vão, como os decanos,
Sem ponta de ternura!»

E o intrujão emudece. Amplifica-se o silêncio.
Prolonga-se na noite e a Treva cresce.
E nem um mocho pia, (oh!, o Horror vence-o!)
A Sombra Eterna Desce.

Traz o Sétimo Selo na batina e a Foice à ilharga.
Não fala, não respira, não discursa
Num gesto só ceif’Ela a vida amarga,
Com a força de uma ursa!

E o impostor adormece, tombando no chão frio.
O burburinho morre num quebranto.
Nunca esteve tão cheio, este vazio,
De plúmbeo pasmo e espanto!

Ergueram-se alguns porfim do seu sid’rado torpor,
Para pegar no corpo ainda a expirar,
E o removerem (mas com que terror!)
Desse chão glaciar!

Deixaram os seus vícios e os seus egoísmos vis,
Tomaram o cadáver moribundo,
Uns pelos membros, outros p’los quadris;
Rezaram em quimbundo!

Gritaram em mil línguas os mil nomes da Fortuna
Sabidos no passar de cada porto;
Cantaram fados tristes de uma tuna,
Beberam pelo morto!

II

E alguém brindou então erguendo o copo
Aos astros que há no Céu.
E alguém gritou «Ladrão!; Tens esse corpo
Mas esse corpo é meu!»
Pois houve alguém que reclamou o morto –
E disse: «Ele sou eu!»

III

Ai esse alguém fui eu,
Ai, esse alguém fui eu!

Lisboa, 19/01/98

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