Saturday, June 2, 2007

Livro de Reclamações

Não há vontades nos Homens!
Não há ideias!
Perdeu-se o afecto, por negros
E sujos anos que somem:

Somos corpos tristes que vagueiam…

Proliferam as lágrimas e as chagas;
Multiplicam-se os gritos;
Mas sufocados na solidão das casas!,
Mas abafados na imensidão dos mitos:

De que há consolo para os aflitos…

É na vergonha escura das mansardas,
No secretismo das longas catacumbas,
No abandono gótico dos becos,
Que os racionais despem suas fardas,
Que os sepulcrais[1] largam suas tumbas,
Que os Monstros despem de si mesmos
Os Homens abjectos!

O ser sensível tornou-se um ser proscrito.
A sua condição é ser maldito,
Criminoso de coisas por fazer!

Nos teatros sociais do quotidiano
O indivíduo é apenas objecto
Esperando aval estatal p’r’ ácontecer.

Isto é insano!
Isto é d’enlouquecer

Vivemos.
Mas presos por cadeias.
Tudo é restrito.

Estamos mortos, por certo,
Ou então…
Aflitos!

Somos caras de medo com sorrisos:
Um rasgão comprido de orelha a orelha,
Uma grande fenda na parede…

E por sorrirmos tanto,
Por fingirmos tanto,
Não rimos quando
O coração nos pede.

A alma nada espelha:
O vazio colhe-a como se fosse uma rede.

Sobrevivemos.
Gozamos prazeres momentâneos.
Somos aos poucos.

Porque a vida é feita de recortes
Ligados entre si de qualquer modo:
Tudo é disperso
Nada é um Todo.

A reacção é um acto extemporâneo
Que logo termina num sufôco.
Tudo é aparente.

O sentimento é só demagogia,
Em que tudo é dito mas nada se quer:
A palavra é a forma, não o que dizia:
Falar é um exercício do prazer.

FALAR É UM EXERCÍCIO DE PODER.

Enfim, nada se sente.
A indiferença está de pedra e cal.
Da sensação ficou o seu inverso:
O ser-se frio e pungente:
Numa palavra: Ser profissional.
É cómico o progresso!

O mundo avança
E não sou eu que o regulo.
A Moral manda
Mas não há Bem nem Mal:
«É uma dança! É uma dança!»
E era a Dor afinal…

O corpo está parado numa banda
Mas o coração está aos pulos.
Fatal!
Esta vida tresanda –
Traz nela manchas, cabelos –
Traga nova. Arranje-se!
E, enquanto espero, que mande
Vir um bom copo de brandy
E um ou dois cubos de gelo:

Uma palavra-chave: Contenção.
Tenho de esfriar o coração
Pois tê-lo quente é a causa do meu mal:
É isso, pelo menos, que calculo…

O sofrimento não pode já ser nulo,
Ou imatemático;
Tem de ser algo sistemático,
100% racional.

É preciso enfrentar a lógica a qualquer passo que damos;
É preciso sermos mais
Do que somos.

Não há inovação –
As mentes e as vidas estão paradas:
A mão hesitante vem timidamente
Mover a pedra que tapa a sua entrada.

Mansidão?
Chaga!

Não há tolerância
Para a diferença que individualiza.
A distância
Aumenta e muda como a brisa.

Perde-se o ar.
Perde-se a postura.
Viver é já igual a suspirar
E respirar é coisa chata e dura.

Tudo é despiste; lapso; fait-divers.
Tudo é sem proveito.
Nada se leva a sério
Mas tudo se leva a peito.

No fundo é o que se quer: Uma balbúrdia.
A confusão é a harmonia ideal.
A ordem é uma coisa estapafúrdia:
Cansa muito e faz mal.

Ninguém é igual a si próprio.
Ser sincero é ser burro.
É preciso ter um telescópio[2]
Para apartar a fala sã do zurro.

Toda a urbe é galé.
É duro ir para a vida e ser noviço!
Navegarmos na proa e o Vento Fronteiriço
A empurrar-nos p’r’á ré!

Não podemos falar.
Mas a tristeza é tanta!
A crítica, tal como uma planta,
Sofre um corte.

Ser é ter Fé.
Não crer é ter a dor como consorte.
E nem morrendo se pode olhar a Morte,
Como Ser Supremo que Ela é.

Mas eu hei-de negar a minha Sorte,
Terei mais garra e nervo que Mavorte,
À Morte falarei legando a Morte,
Quando perder, achar-me-ão de pé!

Lisboa, 16/01/97


[1] Nota do Autor: Neologismo semântico – ler sepulcrais como um substantivo. Para a palavra, que é bela, parece-me justo que se lhe alargue o sentido; e a mim dá-me jeito…
Nota do Crítico Literário: Toda a má poesia precisa destas invenções. O engenho do autor está para a trafulhice e não para a escrita, do mesmo modo que o engenho do ladrão está em trabalhar para o furto, furtando-se ao trabalho. Eis pois, em toda a evidência, o motivo claro da malfadada crise que assola a literatura portuguesa…
[2] Versão alternativa: Microscópio.

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