Tuesday, June 5, 2007

Pela Estrada Fora…1

Cap. I - O PRINCÍPIO:

Estou a viajar no meu carro que não sei guiar,
Ao longo de uma estrada nocturna,
Com destino ainda por estabelecer.

Estou onde não sei se quero estar.
A paisagem é mais bela quando não é diurna.
A noite é um terrível que inicia o prazer.

Não reparo nos sinais de trânsito;
Não olho para as tabuletas que,
Iluminadas pelos faróis,
Assinalam persistentemente os nomes de localidades que não conheço
E onde nada me interessa...

Tudo por onde passo tem a cativante Felicidade do Desconhecido...

O que fazer? Passar!
Sentir a atracção do Indefinido!

Cap. II – A EXPLICAÇÃO:

Atravesso paisagens monótonas de cimento,
Campos com árvores e animais de pasto,
Casas isoladas onde não sei se alguém mora,
E nunca paro,
E não olho quase,
E não aprecio
Porque não quero,
Porque o amargo de boca que me deixou a vida
Não me deixou alguma vez apreciar.

Por isso escolhi não provar dos seus frutos…

E não olho.
Não paro.
Não contemplo.

Ao longe,
Em frente,
Vê-se apenas estrada
Diminuindo mais e mais no seu ponto de fuga,
Fechando-se à minha frente,
Confundindo-se com um céu sem côr.
O conta-quilómetros que não sei ler
Acusa progressivamente a distância percorrida;
Mas na verdade,
Não tenho um modo efectivo de calcular a distância;
E que lucro, mesmo que soubesse medi-la,
Me traria esse cálculo?

Por isto abomino a matemática:
As suas resoluções claras,
As suas lógicas bem medidas,
As suas verdades científicas;
Elas
Ocultam a verdade maior de não haver Ciência
Ou Lógica
Ou Resoluções,
E de existir apenas a dúvida.

As Ciências
São uma outra forma de religião.
São uma fé que pomos nas coisas que nos rodeiam,
Nas coisas que imaginamos,
Para sossegar
Um curioso coração inquieto.

A Lógica
É uma alucinação da inteligência,
Uma paternalização do ego,
Estabelecida para afirmar uma ordem
Onde ela por si mesma
Não pode ser possível.

A Resolução
É uma afirmação após um cálculo
Que surgiu de um Sistema imaginado
E, por isso,
Como efectividade,
Irreal.

Por isto,
Apago esses três monstros da criação sistemática
Da memória das coisas que fazem parte de mim,
E sigo em frente, na estrada,
Sem certezas, só bruma,
E uma falta de noção das direcções:

Norte, Sul, Princípio, Fim…

Onde estão estes deuses das nossas Sensações?
Onde os contornos de nós, monstros de espuma?

Algures em frente;
Algures no inexplorado;
Algures por aí.

Assim,
Eu sigo em frente,
E nunca paro;
Porque é em frente que está
(Sei, pouco claro)
O caminho que me faz progredir.

Assim,
Sou claramente
Pouco claro.
Mas é em frente que está
(Além do breu das sensações com as quais me deparo)
A ideia de luz que me vai definir.

Assim,
Primo no pedal
Acelerador:

(…)

Vozes de Mim: Antecipo o mal
Antecipo a dor.

(…)



Cap. III - DIVAGAÇÃO:

No fim quero a paz.

(Vejo o fim ao fundo
Um mover ao longe)

Que monstro ma traz?

(Tem um ar imundo,
Um capuz de monge)

Virão coisas más?

(Não há muito tempo
Sentia sossego)

Será que existia?

(Mas do céu cinzento
Caiu um bruxedo)

Eu então dormia…



(Primo no pedal
Acelerador.
Antecipo o mal
Antecipo a dor).



INTERLÚDIO:


Vozes da Noite: De que foges fugitivo?
Porque segues nessa estrada?
Que deus te pôs de fugida?

Foi o Carnaval?
Foi o Amor?

Vozes de Mim: Isso de que falas é a Vida…



Cap. IV - O INFINITO:

E aquela distância antiga,
Já bem mais perto de mim,
Dá lugar a uma outra
Que eu jamais percorri.

(…)

(Primo no pedal
Acelerador.
Antecipo o mal
Antecipo a dor).

(…)

Não sei se algum dia poderei conhecê-la…

(…)

(Primo no pedal
Acelerador.
Antecipo o mal
Antecipo a dor).



Cap. V - REVELAÇÃO:

Porque a distância a percorrer é infinita
Mas é finita a nossa capacidade de correr por ela.



(…)

(Primo no pedal
Que me atira em frente.
Ser-me-à fatal?
Ficarei contente?)

(…)

(Primo no pedal
Acelerador.
Antecipo o mal…)

(…)

Cap. VI - PERCURSO:

Deixo árvores e casas para trás.
Abro a janela.

(…)

(E quero paz, quero paz!
Onde está ela?!)

(…)

Passar pelas coisas, passar por mim o vento.
Avançar esquecendo a velocidade.
Deixar um pouco de mim no que contemplo.
Fazer parte de tudo… Liberdade!



Cap. VII - A VONTADE E O CHAMAMENTO:

Abstrair-me.
Sentir as coisas todas como sendo elas.
Depender o eu ser desta viagem.

Reconstruir-me.
Ser um Mapa-Mundo: Lisboa, Paris, Bruxelas.
Viver por dentro, nunca estar à margem.

Sentir-me
Inteiramente
Nesta estrada.
Todo eu ser percurso.

Confundir-me
Com tudo
E por isso
Ser nada.

Ser um outro animal:
Cavalo, tigre, urso…

Ser o motor do meu automóvel.
Banhar-me em óleo, chupar combustível:

Vrrrrrrrrruuuuuuuum!
Vrrrrrrrrruuuuuuuum!
Vrrrrrrrrruuuuuuuum!

Fios hidráulicos, cabos, porcas, chapa, rodas, parafusos!
Coisas do meu corpo, o seu suporte móvel!
Maravilhas eternas do Incrível!
São vocês a carne, vocês dão-me uso!

Ah!, metafísica!
O som do motor cola-se-me nos ouvidos!
O rugido do coração do meu carro ecoa pela noite acordando os mortos!

Hei lá!
Hei lá!
Hei lá!

Vamos irmãos!
Acordai do Sonho, da Calma, da Exaustão!
Sou eu que passo o meu motor pelos campos!
Há uma festa cá fora!
É a vida que promete esgotar-se na vida
E renovar-se na noite que tudo renova!

Restaurai as mentes!
Ressuscitai os corpos!

Vrrrrrrrrruuuuuuuum!
Vrrrrrrrrruuuuuuuum!,

Hei lá!,

Acordai!
Acordai!
Porque dormis ainda?

Eu sigo nesta estrada até não poder mais!
O meu querer corre-la nunca finda!

O que esperais?!
Que esperais??!
Segui comigo, irmãos!,
Segui comigo!!

Que não vos pare o chão,
Que não vos prenda o jazigo!

Tenho mais a ter da vida do que o caminho que sigo!,
Tenho mais a ter da vida do que o caminho que sigo!,
Tenho mais a ter da vida…



Cap. VIII - O OBSTÁCULO:

Espera… Abranda um pouco…
Vejo agora um cruzamento, logo a seguir a um troço.

Há uma linha de comboios guardada com cancela.
A viagem
Trouxe-me a um desses sítios sem espaço realmente efectivo,
Por não vir nunca mencionado nos mapas:

Que tenha gente feliz que possa ensinar-me a sê-lo!

Quem sabe,
Fora do alcance das noções e medições cartográficas,
Esteja também fora do alcance das contrariedades da vida,
E das desilusões,
E dos desgostos,
E das insónias,
E das frustrações inerentes a todas as circunstâncias da Natureza Humana.

Olho em frente.
Assalto de pé firme no acelerador
Os ferros cinzentos da passagem de nível.

Por um cruel infortunio das circunstâncias
(Aquelas que nos perseguem mesmo nas localidades não cartografadas),
A minha hora de passagem
Não conseguiu coincidir
Com a hora de passagem do comboio.

As circunstâncias têm o condão de operar
Contrariamente às nossas expectativas:

Não esperes.

Por conhecer nesta máxima a sua sabedoria,
Eu nunca espero no caminho que sigo
E vou sempre em frente.



Cap. IX - A CONSCIÊNCIA:

As curvas são a diversão
Que te leva ao antigo caminho.

E eu,
De antigo,
Quero só a lembrança
De ter sido novo
E não conhecer nada
E de não precisar de horas para existir.

Hoje, que ganhei consciência,
Desejo apenas o desconhecido
Por onde passarei só uma vez:

Se não repetir experiências,
Como posso dizer que sei verdadeiramente das coisas?

Pode ter sido tudo um grande sonho
Como se nunca tivesse deixado de dormir...

E sigo em frente,
E nunca paro
Porque é em frente que está
(Sei, pouco claro)
O caminho que me faz progredir.



Em frente está o sonho prometido
No consolo do sono mais cruel.

Em frente está a sombra do abrigo,
O néctar que põe de parte o fel.

Em frente está o ar mais respirável,
Está a promessa de abrigo;
Está o Olimpo, Sublime e Inalcançável,
Está a escrita –

(Sublimação da desdita
Que trago sempre comigo).

Em frente a promessa de passagem
Além da porta interdita.

(Em frente o perigo…)



Por isso,
Vou em frente,
Em frente,
Ditoso sigo.

Estou feliz porque não estou aqui.
Estou feliz porque não estou aqui.
Estou feliz porque apaguei o real
Cortei assim a raiz do mal
Cortei assim a raiz do mal
Cortei assim a raiz do mal
Cortei assim…

Sigo.



Último Capítulo - DESPERTAR:

As luzes do meu carro
(Que não tenho)
Confundem-se com todas
As luzes da noite.
Caso estranho!, O cinzento de mim…

(Tanto pó em mim, tantos ácaros!,
Tanto pó em mim, tantos ácaros!,
Usem-me!, usem-me!,
Tirem-me da prateleira!
Usem-me!, usem-me!,
Tirem-me da prateleira!)

E o cinzento de mim…

(Mas usem-me!, usem-me!,
Que não me sinto ser!,
Usem-me!, usem-me!,
Que não me sinto ser!
E se eu voltar a mim
E não me conhecer?!
E se eu voltar a mim…)

Sim. O cinzento de mim
Confunde-se com este céu cinzento –

(No céu sou eu,
É o que eu tenho dentro,
No céu sou eu,
É o que eu tenho dentro,
No céu sou eu…)

Espera;
Pára no semáforo…
Como escrevo e guio ao mesmo tempo?


10/01/02 – 29/04/04

(…)

(De Lisboa onde ainda bate o Sol, ao decadente cinzento de Bruxelas)…

1 Nota do Autor: A metáfora tem já escamas de tão velha: A estrada é a vida, evidentemente...

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