Nesta mesa onde me sento,
Onde repouso e descanso,
Neste pensar que é tão denso
E ao mesmo tempo tão manso,
Eu julgo ter percebido
Que nada sei sobre mim:
Sou um mistério insurgido
De um fogo ingente e carmim.
Quero mais e mais me falta
A cada querer que eu anseio.
A minha fome vai alta,
O meu prazer vai a meio...
Quero ir além de tudo
O que existir p'ra passar:
Além do céu negro e mudo,
Da superfície lunar.
Mas se além chego outra mágoa
Vem constrangir-me sem dó:
Insaciado na água,
Acompanhado e tão só!
Do outro lado de tudo
É tudo tal como aqui:
Tal como o céu, negro e mudo,
E tão ausente de si!
Evoluir é um abismo,
Não vejo bem no Progresso;
Tudo me surge num ismo,
Tudo me sabe a Regresso...
Volto atrás sem perspectivas
Nas perspectivas de mim...
Ando às voltas, à deriva,
Circulo em torno do fim...
Ser ou não ser este homem,
Com corpo e mente e razão.
Cinco sentidos que dormem
Sobre um fugaz coração...
Chegado o dia do termo,
O que fiz eu que me importe?
Sou um lugar sêco e ermo,
Deserto vago de Morte!
Passam por mim caravanas
Sobre os meus sonhos reais;
Mudam-se areias e ganas,
Mudam-se os tempos sid'rais...
Elas vão além da linha
Do Horizonte sombrio;
Vão vender isso que eu tinha
Antes de ser tão vazio:
A minha alma corrupta
Por tanto desejo vil;
A minha fé resoluta,
O meu céptico perfil.
Vão vender na feira laica
Os perfumes do além;
Rezas negras da Jamaica,
Ritos do Mal e do Bem;
Vão vender a Aventura,
O Amor e a Saudade;
Vão promover a Ventura,
Pôr na praça a Liberdade;
São os vendilhões do templo
(E esse templo sou eu)
Dão o pregão - um exemplo:
«A cinco tostões o Céu!»
As gentes, ávidas, correm
E acorrem à chamada;
As gentes ávidas dormem...
Vão a tudo, vêm nada...
E é assim com a vida
Que sem notar experimentamos:
A cada gesto uma ida -
É um cais que abandonamos;
Damos por nós, certo dia,
E já corremos um mar…
Mas onde fomos? Sabia
Muito melhor bolinar!
Que o vento então decidisse
O port' aonde acostar;
Que Deus então me surgisse,
Me desse forma e lugar!
Toma, ò Génio, esta costela:
Eu tenho andado tão só!
Eva perdeu-se à janela
Do sonho que se fez pó…
Dá-me outra deusa que tenha
O mesmo virus mortal:
Uma fome vil e estranha
Pelo espaço Universal!
Alguém que veja na vida
Mais que um ponto de passagem;
Que se prefira engolida
Pela boca da voragem!
Que queira tudo, além-tudo,
Que veja ter tudo em mim:
Mesmo send'eu negro e mudo,
Mesmo send' eu isto: assim...
A permanência inconstante,
Ou a excepção trivial:
Nada nos serve o bastante;
Tudo é dif'rente e igual...
Muda-se tanto e tão pouco,
Somos de tudo e de nada;
Somos o sábio e o louco,
A vida bruta e parada.
Somos esta carne sêca
Entre a areia do Deserto,
Carcassa errante que peca
Sob as estrelas do Incerto;
Somos isto que quisermos
Sem valor além de letras;
Espectros que remam, enfermos,
Por rias frias e pretas;
Viajamos sobre o Letes,
O Letes viaja em nós:
Soterrada, entre ciprestes
Deixámos a nossa voz.
Para quê cantar mais tempo
Se também deixou Orfeu
A lira, por um lamento,
Soterrada sob o céu?
E seguimos sob o monte,
Rio abaixo navegamos:
Dar a grinalda a Caronte,
Pagar o óbolo vamos...
Cérbero já se vislumbra,
Além, ao fundo do rio;
Cérebro, pára!, é a tumba!
Já falta pouco... Que frio!
Vou na barca do Inferno
E ninguém me viu passar;
Sigo em frente sem governo
E já não penso em parar.
Pedi a Deus uma deusa,
E vejo Lídia na margem;
Lídia é de Reis! A mim, Neusa!
Amar-te-ei de passagem...
Bato à Porta do Tormento,
Peç' ao Diabo p'r'entrar;
E vem-me abrir, sonolento,
Um demónio feito d' ar;
Digo a senha, faço figas,
Diz-me que sim e que não;
Mostra-me sete barrigas,
Tem sete pés, sete mãos.
E por sete bocas feias
Fala do fundo do assmobro:
«As sete covas estão cheias!
Olhe por trás do meu ombro!
Vá bater a outra porta:
O Inferno está lotado!»
Continuei - E que importa?!
Hei-d' ancorar noutro lado!
Para um morto - e eu estou morto!,
Nem burros à andaluza,
Nem canapés (nem um porto!),
Nem cetins, nem uma blusa
Trazem conforto eficaz.
Não faz diferença, não cansa -
É mal ou bem? Tanto faz...
Mais à frente há outra dança!
E rio abaixo e acima,
Nos pesadelos de mim,
Eu passo Baía e Lima,
Paris, Lisboa e Pequim!
Atravesso todo o globo
No meu sonho glaciar:
Na Morte forjo-me um lobo -
Um velho lobo do mar...
Moby Dick, já estou perto!
Meu inimigo mortal!
Meu vão delírio desperto,
Minha ilusão capital!
Um de nós há-de acabar
No grande eclipse final!
Um de nós há-de gritar:
«O que fui eu afinal?!»
Ser ou não ser o agente
Nesta mesa em que me sento,
Deste pedaço de gente,
Sonho que pensa tão denso;
Neste lugar de pesquisa,
Onde repouso e descanso,
Onde me sopra uma brisa,
E me afaga um vento manso,
Eu julgo ter percebido
Que nada sei sobre mim:
Sou um mistério insurgido
De um fogo ingente e carmim…
E nada do que me crie
Ou do que me queira crer
Fará com que contrarie
A minha forma de ser:
Este mistério insolúvel
Este tremendo vulcão;
Est'astro breve e volúvel,
Asteróide em colisão;
Este foguetão pousando
Na superfície lunar;
Este adagio triste e brando
Ou este enorme rufar!
Este coração com vida
Que anseia, pula e que dança!
Esta «bola colorida
Entre as mãos de uma criança!»
Eu sou de tudo e de nada,
Tudo o que vês está em mim:
Se não há mais, rompo a estrada:
Neófito, não há Fim!
Lisboa, (Sapadores), 26 de Junho de 2007.
Tuesday, June 26, 2007
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