Sunday, July 1, 2007

Canção do Bandido

Sou um pobre bandido
Sem eira nem beira
Não tenho um sentido
Nem talvez o queira;

Vagueio no escuro,
Preparo armadilhas,
Disseco o futuro
Numas cigarrilhas;

No vazio das ruas
Procuro emoções,
Mas nem com gazuas
Abro os seus portões;

Vejo atrás dos muros,
Por dentro dos bêcos:
Apenas uns duros
Roubando uns pategos.

Busquei sob as pedras,
Sobre os candeeiros,
Junto às torres vedras
Lá de um pardieiro;

Perfurei as estradas,
Escavaquei passeios,
E só vi ossadas
De uns esqueletos feios;
Sem querer desistir
Investi mais fundo:
Não tenho Porvir,
Que me importa o Mundo?

Eu quero um abismo
Que seja só meu:
Será comodismo
Rejeitar o Céu?
Insiste! Persiste!
Prossegue! Porfia!
O ser que desiste
É besta sandia!

E num esforço insano
Cavei mais p'ra dentro,
Para além do humano,
P'r' além do tormento;
Até que por fim
Achei um vulcão
Que explodiu, enfim,
Numa exaltação;
A lava descia
Pela sua encosta
E eu nem me movia
Com a visão imposta;

«Que medo, que assombro!»
Pensei estarrecido,
Tremeram-me os ombros,
Perdi os sentidos;

Quando vim a mim
Já tinha morrido,
Lamentei o fim,
Chorei incontido;

Mas não cesso a busca,
Não esqueço a missão:´
O cansaço ofusca,
A vontade não;

Anseio, pesquiso,
Revolvo essa lava,
Mantém-se impreciso
O que antes buscava;

Penetro as entranhas
Do Monstro hediondo:
Fornalhas tamanhas
Com tamanho estrondo!

Que horror, que suplício!
O Inferno é isto?
«Caramba! Que vício!
Pareces o Cristo!

Porque dizes mal
Do que desconheces?
Isso é afinal
O cancro das preces:

Isto é violento,
É certo, mas belo.
Mas cá me apresento:
Satanás Campello.

Nasci mais além,
Mas habito aqui.
Dispensei o Bem
Porque não o vi.

Procuro um amigo,
Não sei se ele és tu.
Há anos que o sigo
No sonho mais cru:
Um homem alegre
Que aprecie a arte,
Com quem não me enerve,
De quem não me farte.

Que goste de um copo,
De jazz, de xadrez,
Que ame o barrôco,
E um whisky maltês;

Que evite contendas
Sobre o Universo,
Mas que ame e entenda
O esplendôr do verso:

Esse homem perfeito,
És tu, ò bandido?
Que peso no peito!
Que aperto sofrido!

Enfim, esquece tudo,
Estou talvez tocado...»
Enfim, fiquei mudo
E um pouco pasmado:

Que milagre é este
De encontrar o Mito?
O ícon da peste,
O Anjo Maldito?
Mas será possível
Que essa coisa horrenda
Tenha causa cível,
Prelecções de emenda?

«O senhor, - expliquei,
Meio encavacado, -
Está grosso, não sei,
Ou está enganado;

Não tenho o perfil
Daquilo que quer:
Ou estará senil
Ou será mulher!»

«Senil eu não sou!
Mulher também não!»
«Então abusou
Do seu garrafão;

Isto não está certo,
Nem sequer me agrada.
P'r'a estar neste aperto,
Volto a pôr-me à estrada;

Por onde se sai
Deste pocilgão?
Este vai não vai
É uma irritação!

Mas que labirinto!
Mas que porcaria!
Não sei o que sinto,
Mas tenho uma azia!»

Já vi, tristemente,
Que Céu e Inferno,
São, basicamente,
O mesmo antro enfermo;

O melhor, enfim,
Será vaguear,
Mandriar, assim,
Sem nada que achar:

É bom ser bandido,
Roubar a quem tem,
Seguir destemido,
Sem temer ninguém;

Fumar cigarrilhas,
Vaguear no escuro,
Tecer armadilhas
Ao próprio Futuro!

Já corri o Mundo,
Já vivi nas Estrelas,
É tudo infecundo,
Paisagem p'r'a telas;

Já estive com Deus,
Não sabe o que quer,
Já comi pitéus,
Provei o prazer;

E já fui ao Inferno,
Já vi Belzebu:
Escaldava o estafermo!,
Tratei-o por tu;
Bebemos um pouco,
Falámos de nós,
E vi que era um louco
Sentindo-se só;

Depois do que vi,
Depois do que achei,
Pensei que vivi,
Pensei que pensei;

Mas se penso e sou
São outras ideias
Que o tolo esgotou
Ardendo candeias;

Porquê pensar nisso
Se basta passar,
Sem ter compromisso,
Sem ter de parar?

Assim continuo
Bandido e ladrão
Rumo ao fim de tudo
Lá na Imensidão;
Cavalgo sem tréguas
O meu alazão,
Vou papando léguas,
Toando a canção:

Sou um pobre bandido
Sem eira nem beira
Não tenho um sentido
Nem talvez o queira;

Vagueio no escuro,
Preparo armadilhas,
Disseco o futuro
Numas cigarrilhas;

No vazio das ruas
Procuro emoções,
Vou de lua em lua
Atrás de ilusões:

Como esta de agora
De estar mesmo aqui:
Como vivo a hora
Se outrora eu morri?

E tu meu leitor,
Não serás como eu?
Um espectro de dor
Procurando o seu?[1]

Não busques, que é vão,
Vadia comigo!
Ao som da canção,
Do eterno bandido...

Lisboa, 12/03/2006

[1] Nota do Autor: Versão alternativa - Procurando o Céu.

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